O começo de 2020 precisaria se esforçar muito para ser mais catastrófico para a minha família. Tudo estava errado. Morando de favor, encarando a maior pandemia da nossa geração, sem renda fixa, começando a dar os novos passos num mundo ao mesmo tempo familiar e totalmente alienígena: São Paulo, onze anos depois. Retornar ao Brasil foi uma aposta muito arriscada, necessária e deu certo aos 49 do segundo tempo.
Antes, um breve resumo para quem chegou agora: sou jornalista formado e passei a última década trabalhando nos Estados Unidos, em Los Angeles, como correspondente internacional e cobrindo o mercado de cinema e entretenimento, com minha esposa e meus dois filhos (até então). No meio do caminho, mudei de rumo para a escrita de ficção e roteiros de cinema, além de ensinar tudo isso. Mas foi uma década marcada por mudanças tanto sociais quanto econômicas, com a chegada da mentalidade republicana ao poder por lá e uma economia catastrófica por aqui. Resultado, ficar lá se tornou insustentável. Por isso, precisei apostar no uso das minhas habilidades em território nacional, onde eu poderia reconstruir sem ir pra cama desesperado com a cotação do dólar.
O plano era encontrar um emprego num patamar pré-definido para sustentar a família e me permitir respirar aliviado. E isso significava saber que várias propostas seriam recusadas imediatamente se a faixa salarial não fosse aquilo que eu precisava. Sinceramente, na minha idade, não dá mais para pensar em “dar um passo para trás e dar dois para a frente”, eu precisava acreditar no meu taco e na minha experiência. Pode parecer arrogante? Não, era necessário. Trabalhar pela metade do necessário só esgotaria minhas possibilidades e me deixaria mais estressado ainda, pois faltaria dinheiro para o mínimo. Éramos uma família de quatro pessoas, não poderia esquecer disso.
Quando cheguei a São Paulo, encontrei um cenário bem complicado na comunicação social. Redações diminutas, agências de comunicação pagando muito pouco e exigindo devoção praticamente integral, muitos amigos ralando na geração de conteúdo, quase ninguém seguro onde estava. Sempre foi assim? Acredite, já foi muito melhor. Enfim, era um cenário muito hostil.
Procurei, procurei e nada. Até pintaram uns freelancers aqui e ali, mas nada que pudesse dar segurança. A saída foi alugar um escritório e me dedicar ao EscrevaSuaHistoria.Net, minha plataforma de ensino de escrita criativa. Tivemos um bom ano em 2019, bom, até a pandemia chegar e colocar uma estaca no coração das aulas presenciais. Por conta do Covid-19, algumas coisas pioraram minha situação: tive que abandonar o escritório, passar o dia todo dentro da casa de familiares que nos abrigavam (o que rendeu muitos atritos), ver a receita das aulas despencar até desaparecer (e preciso dizer que as pessoas fizeram o certo, não era hora de apostar em nada; era hora de se preservar.)
E, no primeiro dia do isolamento e do distanciamento social em São Paulo, descobrimos que a Lu estava grávida.
A coisa toda ficou caótica, acredite. Aí, adivinha quem voltou? A depressão. Então entraram os remédios, a ansiedade, as crises e o medo de não estar mais apto a fazer mais nada e ter chegado ao fim de uma carreira insana e bem prolífica. A pandemia e o isolamento pioraram tudo e o tempo fechou. Nada de traduções no mercado nacional e os freelas remotos para os Estados Unidos praticamente sumiram.
Mas, como diz o personagem de Mel Gibson em “O Patriota”, “eu sou um pai, não tenho o luxo de viver por princípios”. Eu precisava trabalhar, precisava fazer a minha aposta dar certo, afinal, quando se aposta numa carreira, não é como jogar na loteria. Há alternativas para lutar, como bem lembraria Ben Kenobi. Tentei arrumar umas coisas via LinkedIn, mas nada vingou. Comecei a pedir ajuda. Não foi a primeira e, felizmente, não será a última. Ao longo desses anos, aprendi a confiar e, por várias vezes, só me mantive vivo e minha família alimentada era graças a amigos.
Conversei com muitas pessoas a quem devo demais, ouvi conselhos, segui orientações, discuti ideias, e, quando pude, também ajudei. Afinal, não era só eu naquela situação bizarra. O mundo estava mergulhando rumo ao desconhecido e todo mundo precisava de algum apoio. Fiz minha parte.
Uma dessas pessoas foi o Elígio, ex-aluno que trabalha na 3M. Reinventamos o meu currículo, reorganizamos as ideias, pensamos numa estratégia para começar a me vender para assessorias de imprensa quase 12 anos depois da minha última passagem pelo segmento. Sinceramente, eu não queria voltar. Assessoria de imprensa costuma moer quem trabalha lá e, da última vez, fez estrago.
Mas lembra do plano? Da aposta? Independente do setor, o objetivo era voltar ao mercado de trabalho formal ou, pelo menos, garantir uma renda fixa no Brasil. Valia tudo.
Mesmo assim, nada vingou imediatamente e a busca continuou.
Novos Ventos
Aí entrou a parte totalmente fora de controle, mas, por mérito próprio, fruto de 7 anos de trabalho.
O WhatsApp recebeu uma nova mensagem. Era uma ex-aluna, ex-mentorada e fã dos tempos de “Filhos do Fim do Mundo” — sim, omitirei o nome dela propositalmente. Agora advogada e trabalhando em Brasília, ela estava procurando por um revisor. “Era uma pena eu não morar no Distrito Federal.” Bom, a lampadinha do Professor Pardal acendeu com a intensidade de mil sóis. Respondi: “e se eu me mudar?”
A resposta dela me faz rir até hoje. “Você viria mesmo? Por que eu posso fazer acontecer.”
Eu não acreditei, claro.
Foi mais ou menos assim, o destino ofereceu uma alternativa, uma oportunidade, uma chance. Eu abracei com todas as minhas forças. Embora nunca tivesse sequer pisado em Brasília e tivesse zero experiência com comunicação governamental. Por outro lado, era um trabalho como revisor ortográfico de departamento jurídico. Dava para tirar de letra e ainda aproveitar as horas vagas para escrever um bocado. Parecia perfeito.
Mesmo assim, eu duvidei. Afinal, quando tomamos tanta porrada, a gente começa a duvidar de qualquer coisa. Eu estava ferido — ainda estou — e não queria mergulhar mais ainda em outra crise por “ser qualificado demais” ou “não ser bem aquilo que procuramos”. Enviei o currículo como havia enviado tantas vezes, porém, nem aguardei. A desesperança é mais poderosa ainda quando ela é tudo que restou.
Uma semana depois, o esperado: eu precisava adequar o currículo, não tinha “cara de governo e estava muito iniciativa privada” (por razões óbvias). Foi um balde de gelo ártico nas minhas chances. Fiz as mudanças e enviei. Enquanto isso, continuei criando novas palestras e virei o vendedor de cursos no Twitter. Se você me conhece, já deve saber que odeio vender qualquer coisa, seja um livro ou um curso. Eu gosto de ensinar, de escrever, de conversar a respeito de cinema e literatura, mas esse negócio de ficar mendigando na internet acaba comigo. É assim que me sinto, seja numa campanha de financiamento coletivo, seja no lançamento de um livro. Sinto como se todo mundo estivesse me julgando e, claro, rindo da minha cara. Enfim, vender e Fábio não combinam.
Na semana seguinte, depois de algumas ligações com a amiga e mensagens, até então, cifradas do tipo “acho que você vai para outro departamento” e “estão querendo te roubar de mim”, cheias de siglas de departamentos, núcleos e nomes de pessoas que só confundiam a cachola, pintou uma mensagem. Era a oferta salarial.
Era praticamente o que eu precisava.
Mas sempre tem um “mas…”
Claro, tinha um “mas”. Eu não seria mais o revisor do departamento jurídico, um movimento interno havia resultado na minha realocação para outro departamento. De um modo mais direto, quando o chefão viu meu currículo para aprovar a contratação, ele disse: “esse cara não é só um revisor, ele vai reconstruir meu setor de comunicação.” Na prática, significava recompor uma equipe de assessoria de saúde no meio da pandemia e encarar a bucha, independente do que o futuro nos reservasse.
Bem, ofereça uma tarefa complicadíssima para um sujeito que havia acabado de escrever e publicar um livro em três meses [Snowglobe] e adivinha o que ele vai responder? Aceitei e aguardei.
Foram duas semanas bem tensas e incertas. Como viajar para Brasília sem me expor ao vírus? Como construir uma nova vida do dia para a noite? Vai a família toda ou vou sozinho?
Chorei demais. De saudade antecipada, de preocupação, de medo, de incerteza.
Então, a confirmação chegou e uma data para me apresentar em Brasília, no Ministério da Saúde. Pedi mais uma semana para estar presente ao próximo ultrassom da Hope, aluguei um carro, entupi o porta-malas com minhas esperanças, medos e expectativas e dirigi por 12 horas até a capital.
Seis meses se passaram desde então.
O medo deu lugar às demandas do dia a dia. A esperança está em cada sorriso da Hope. As expectativas mudaram de lugar, elas estão nos olhos de cada um dos oito membros da minha equipe.
Hoje, vivo a realidade construída por conta de escolhas difíceis, um objetivo claro e, sim, sorte. A oportunidade apareceu e eu estava pronto. Sem ela, a parte boa deste texto não existiria. Mas, bem, isso é realidade alternativa. No mundo real, o que aconteceu, acontece e continuará acontecendo, deu certo.
As feridas ainda estão abertas, a mente está se curando aos poucos e há muito que ser reparado nos outros departamentos, mas uma batalha por vez. A dor continua, porém, hoje eu ouso sorrir. Hoje, eu posso agradecer.
Então, acredite, prepare-se e não se esconda. Alguém pode estar prestes a te ajudar e você só precisa estender a mão. Eu fiz isso e minha vida mudou.
Texto lindo Fábio. Eu passei por algo semelhante. Depois de 6 anos como professor de ciências, larguei tudo com minha esposa e fui ser intercambista na Irlanda. Lá, fui cleaner e barista. Dois anos depois, mudamos para a Inglaterra, para uma licença maternidade que eu iria cobrir na escola. Alugamos o quarto pequeno da casa de uma colega da escola. Quando finalmente consegui uma oferta de emprego como professor, a gravidez da Angélica complicou e precisei voltar para o Brasil. Sem nada. Sophia nasceu lá, e junto com ela veio um cheque da restituição do meu imposto de renda na Inglaterra, que, olha só, era o valor da passagem de ida para Dublin. Falei com a Angélica. Falei com Deus. Falei com um amigo de lá. Deixei Angélica e Sophia aqui efui morar na sala de estar dos meus amigos, faxinando de novo.
Quatro meses depois tinha juntado o dinheiro para trazer Angélica e Sophia, agora com seis meses. No aeroporto, doeu quando a Sophia não me reconheceu. Mas estávamos juntos.
Aluguei um outro quarto em outra casa e moramos lá. Angélica não podia trabalhar e eu dobrava como cleaner e barista,12 horas por dia. Eu orava a Deus e chorava junto com ela. E com os ratos que infestavam minha casa, cujo nome ficou eternamente “Ratolândia”.
Fui morar de favor de novo. A oferta de emprego veio, para uma cidadezinha na Inglaterra. Mudamos de novo. E aqui, em Oldham, ficamos até hoje, onde, finalmente, estamos estabelecidos. Afinal, a gente faz ou não faz. Não existe “vou tentar”, certo?
Abraço e fique com Deus Fábio. Você tem a minha torcida de imigrante e escritor – resultado dos primeiros episódios do Gente que Escreve.
Que texto lindo e cheio de mensagens para as pessoas numa maneira geral e não só para quem escreve ou tenta escrever. Conhecer seu podcast e um pouco da sua história tem me ajudado muito a manter a minha sanidade! Achei importante que vc soubesse disso! Espero ainda poder ter mais contato com você e sua família que já desenvolvi afeto! Tipo, gostei de graça! Hahhahahahhaha Muito obrigada!