Eu sabia que era um sonho. Mas isso nunca foi suficiente para afastar o pavor.
Eu sabia que aquele lugar não existia. Mesmo assim, senti o solo macio, roxo e corrompido sob meus pés.
Eu sabia que o céu nunca poderia ser tão escuro e odioso. Independente disso, as gotas caíam como lágrimas suplicantes e dolorosas conforme escorriam pelo meu rosto, queimando, corroendo, destruído.
Eu sabia que a capela decrépita dedicada ao Diabo, esperando por mim do outro lado das colinas em constante movimento, era fruto da minha imaginação. Corri lá para dentro mesmo assim.
O pesadelo de criança ia e vinha.
Sempre sem fim, nunca com lógica.
Invariavelmente, com medo.
Tornou-se sonho de jovem, nada mais que uma memória atribulada.
O lugar proibido, paredes invisíveis fechando-se por todos os lados, a fuga sob o chão feito para travar, atrasar, amarrar.
Virou realidade na pintura no livro surpreendente e obscurecido pelas brumas da memória e da existência tão logo encerrou-se a consulta.
Mais alguém esteve lá. Mais alguém fugiu. Mais alguém refugiou-se n’onde não havia escapatória, apenas a certeza da danação. Mais alguém.
Sonhos são o subconsciente aflorando, buscando voz, gritando. Dizem. Quem diz? O povo? A tia? Uma voz sempre invocada, sem origem ou razão, apenas a noção eterna do conhecimento nunca dito. Dizem. Chegam a conhecer? O subconsciente conhece, mas subconscientes são nossos, só nossos. Sem visitantes ou registro. O pesadelo vem, o corpo gira, a mente dispara. Os olhos abrem e tudo some, esmaece conforme a consciência reorganiza o caos e afasta o medo. Cada segundo acelerado, lutando contra a alvorada para resguardar os tormentos, mantê-los ativos, a postos, atentos. Parte sobrevive. Parte sempre sobrevive, habitando as sombras invisíveis do dia desperto, uma ameaça constante nos cantos silenciosos da sala de aula, do escritório, da cozinha solitária. Sempre sentidos, nunca manifestos.
Os passos do adulto nos campos gelatinosos das colinas intransponíveis são largos e fundos.
A capela fica mais próxima. Convidativa. Habitada.
Ela chama, atrai, seduz. Ela é. Irresistível mistério de desfecho sabidamente trágico.
O Diabo lá aguarda, paciente ao longo das décadas. Inteirado nos medos, alimentado pelas falhas de ontem, ansioso pelas tragédias do amanhã. Um vigia sem rosto, sem cheiro, sem pressa. Mas com endereço certo.
A capela.
A cruz de ferro é torta, a estrutura colonial é simples, as paredes são brancas e as bordas exalam gerimum. Um farol na tempestade seca do solo odioso.
O canto daquela sereia maldita vem pela visão, pela memória do quadro descoberto e esquecido, da companhia distante do artista perturbado. As colinas aceleram a dança, sobem, descem, nauseiam, distraem, infernizando cada passo sempre em frente.
Há ruína nas paredes, pelo tempo e pela alma caída, conforme a máscara brilhante cai e tudo que reluzia agora engole a luz, os sorrisos e aniquila a esperança.
Mais um passo porta a dentro. O fim de uma busca com destino certo. O término de uma corrida na direção errada, da vitória da curiosidade pela tentação simples. Um passo.
Lá dentro, apenas uma luz distante. Verde. A esmeralda de Oz deturpada por algo distante do mágico, e da bruxa. Algo prestes a me receber.
Mais um passo.
A capela.
O diabo.
O sonho.
O pesadelo.
Um chacoalhão e o despertar.
A consciência surge, mas, desta vez, deixou metade da luz apagada e carrego as sombras para tudo que olho.