“Não é uma história sobre fantasmas. É uma história com fantasmas nela. Os fantasmas são uma metáfora sobre o passado”. É assim que o roteiro de A Colina Escarlate (Crimson Peak), novo filme de Guillermo Del Toro, se autodefine durante a exibição. E isso em si já é uma surpresa, pois com toda a campanha voltada para um filme de terror, o espectador dá de cara com um drama familiar perturbado e, de certa forma, um estudo sobre o fim da inocência. Com o refino visual inigualável de Del Toro e um cenário de época, o longa foge, e muito, às regras de ambos os gêneros dos quais pertence.
Como um dos principais porta-vozes das histórias do gênero fantástico em Hollywood, Guillermo Del Toro vive entre a cruz e a espada. O peso do irreparável O Labirinto do Fauno vai sempre recair sobre suas costas até que ele crie um novo clássico, assim como a temática escolhida constantemente o mantém na zona de dúvida constante por parte da crítica, que, como bem se sabe, nunca leva muito a sério essa “gente que gosta de ficção científica, fantasmas e elfos”. Por outro lado, ele é a referência para que milita na área, é o ‘go to guy’ da DreamWorks e da Universal, por vezes da Warner, quando algum projeto desse tipo precisa de um especialista. Alguém para dizer se aquilo presta ou não. Del Toro manja do traçado. E manja muito. Mas ainda carece de um novo acerto tão grande quanto o Fauno.
Pacific Rim foi subestimado e é um bom filme, com capacidade altíssima de replay (e é divertido ver parte do elenco aparecer em A Colina Escarlate). A continuação foi suspensa recentemente, afinal, o gosto ruim das bilheterias aquém do esperado ainda está dançando na boca do estúdio. The Strand tem ido bem na TV e os livros co-escritos por Del Toro têm grande aceitação, mas, ainda são “coisa de nicho”. O que, não necessariamente, é algo ruim. E soma-se a tudo isso o fato de que ele quer dirigir 23353 mil filmes, mas só tem tempo para fazer um por vez. A Colina Escarlate chegou como promessa de virada de mesa, de penetração maior do mercado e, quem sabe, um novo Fauno.
Del Toro causa arrepios, incomoda e tira o espectador da zona de conforto com uma habilidade extrema. Mesmo anunciando que certas coisas vão acontecer, na hora que acontecem, a reação é inevitável e isso demonstra o refino da direção do mexicano maluco que cresceu vendo filmes de ficção em cinemas mequetrefes, e cheios de ratos, na Cidade do México. Com ambientes carregados de emoção, uma construção de época efetiva e trilha sonora acertada, A Colina Escarlate também aposta na metalinguagem. Edith, vivida por Mia Wasikowska (a Alice de Tim Burton), é escritora idealista, motivada e romântica inveterada, porém, com um pezinho no sobrenatural. Ela é a porta-voz de Del Toro na história, ela discute as regras em questão, sente seus efeitos e, fosse uma melhor escrita – ou tivesse mais curiosidade que inocência – poderia ter escapada de umas belas roubadas. Mas, como todo mundo que vive nesse mundo, errar é preciso e lutar pela sobrevivência é uma obrigação.
Entretanto, justamente pela declaração inicial, não se trata bem de uma história de terror, nem se assume como drama pesado o tempo todo. O filme é um híbrido com momentos bem definidos, tensão bem dosada e uma nova leitura para as casas mal-assombradas. Adoro o tema, tanto que escrevi “A Velha Casa na Colina” e me diverti com as possibilidades. Casas assombradas caíram um pouco em desuso depois de um último rompante há uns dez anos e, agora, Del Toro tenta usar a alegoria como catalisador para determinar os limites entre a inocência e a manipulação. Assim como planta uma semente inteligente, e delicada, sobre os mecanismos do filme: Sir Arthur Conan Doyle ficaria orgulhoso, tanto da referência quanto do uso de sua menção como declaração de princípios. Logo, A Colina Escarlate mistura muita coisa, o que, para muitos espectadores, pode ser um problemão.
Vi pessoas que aguardavam alguma bobagem à la Atividade Paranormal e ficaram frustradas por darem de cara com um cineasta sério, autoral e que acredita na validade de um gênero tão clássico quanto o terror. Outras queriam a fantasia, e os paralelismos, do Fauno de volta e saíram desanimados por terem visto algo mais cru, preto e branco, sem artifícios. É o monstro da expectativa sendo mais forte que monstros da tela.
Os sustos de Del Toro são estratégicos e ele aposta mais no clima de tensão do que na exploração de truques baratos. E, uma vez definido o núcleo principal de atuação, que demora um pouco para acontecer, a história deslancha. E bate de frente com um problema que deveria ser o ponto forte do filme todo: a escalação de Jessica Chastain. O papel de Lucille, de fato, deveria pertencer a Eva Green, entretanto, ela já o executou tantas vezes que é fácil entender sua ausência. Porém, esse é o problema. Lucille é uma mistura de todas as desajustadas que Eva Green já interpretou que, infelizmente, falta novidade na personagem, embora sobre beleza e uma atuação assustadoramente diferente para Chastain, que desaparece na personagem com convicção e força.
Soa contraditório? O problema é que a personagem foi escrita sem originalidade e isso a transforma no ponto fraco de A Colina Escarlate e compromete a obra. Tom Hiddleston encanta, sente e envolve. Jim Beaver, para alegria dos fãs de Supernatural, é efetivo como o pai preocupado; e Mia, embora lembre Alice – também por conta do roteiro – convence e demonstra amadurecimento profissional. Já Lucille, bem, o roteiro planta alguns elementos que podem despistar aqui e ali, mas ela entrega o jogo logo de cara.
Porém, sendo honesto, a estrutura nem depende tanto da surpresa. Não estamos diante de um filme de Shyamalan. Del Toro é um sujeito direto, que confia nas referências, paralelos e elementos que invoca em suas histórias e que, habitualmente, não subestima o espectador, dando aquelas provocadas visuais, sempre fazendo o público prestar atenção em cada elemento em cena, esperando um movimento ou alguma dica. Filmes de Del Toro sempre são estimulantes e esse não foge à regra.
O maior problema é técnico: o som. O começo do filme irrita com diálogos cuja escolha da cobertura foi prejudicada pela edição. Ou seja, enquanto o personagem fala, você vê o queixo se mover de um jeito, mas o som não condiz com aquele movimento. Isso acontece quando o personagem em destaque atuou melhor numa determinada tomada, mas o áudio do outro personagem estava melhor noutro take, então, mistura-se os dois. Isso é comum, mas não deve ser ignorado, especialmente em grandes produções. Ele provoca aqueles momentos de “é, estou vendo um filme e alguém escorregou” e o ritmo é quebrado.
Exceto por esse detalhe, A Colina Escarlate é um filme competente e que agrega positivamente à filmografia de Del Toro, mas sem tirar o brilho de O Labirinto do Fauno, que permanece como sua obra máxima. Entretanto, é complicado posicionar esse longa diante dos demais filmes do gênero do terror, pois o elemento familiar e social é muito mais forte que o terror em si. A narrativa é sólida, honesta e dentro do que se espera de um filme grande. Mesmo sendo boa pedida para o Halloween, de fato, não deixa ninguém de queixo caído.