Este texto será longo, permeado por impressões, observações e reações tanto minhas quanto de pessoas que cruzaram meu caminho durante as primeiras semanas da exibição de Star Wars – O Despertar da Força (Star Wars – The Force Awakens). Este texto não é uma crítica, embora exista, de fato, uma análise técnica infiltrada nele, mas é algo mais, que pretende compreender e contextualizar a maior estreia cinematográfica de 2015 e um dos filmes mais conceitualmente relevantes da Ficção Científica contemporânea. Este texto vai mergulhar no ato de ser fã da Saga, de seus desdobramentos e, claro, da vida gerada por tudo isso. E ele começa agora.
O Último Suspiro antes do Mergulho
Enquanto o carro virtual de Sheldon Cooper dava voltas intermináveis pelo segundo andar do Glendale Galeria em nossas memórias, a família caminhava pelo piso térreo em busca de presentes e sorvete. Era um bom dia, de uma boa semana, às vésperas do primeiro bom fim de ano depois de muito tempo. Havia algo diferente no ar, mas não era a expectativa para o Natal e seus presentes. A resposta veio no rosto do garoto que carregava duas caixas de pizza nos corredores amplos. Ele me olhou nos olhos, sorriu, e disse, sem parar para respirar: “Que legal! Vai ser demais. Está empolgado para ver? Não vejo a hora!” Eu vestia um boné com o emblema da Aliança Rebelde, camiseta e agasalho com o logo de Star Wars. Ele sabia que eu gostava e eu sabia do que ele estava falando. O sorriso disse tudo. Conversamos por alguns instantes e o sorriso dele só aumentou quando disse já ter visto e que ele adoraria. Seguimos nossas vidas, um pouco mais felizes do que estávamos segundos antes.
Menos de um minuto depois, foi a vendedora da Lush quem repetiu o ritual e acabou fazendo uma venda por entender muito do assunto e ter ingressos para a sessão da meia-noite, coisa que nem eu consegui. Esse ritual se repetiu por pelo menos dez vezes nos dias seguintes. Bastava sair em público, devidamente a caráter (qualquer detalhe já despertava interesse), para pessoas totalmente aleatórias puxarem conversa. Novos e velhos. Mulheres e homens. Veteranos e novatos. Todos empolgados, felizes ou curiosos com algo relevante para todos eles: uma estreia de Star Wars no cinema.
Por conta da disparidade de opiniões por conta da qualidade da trilogia mais recente, algo se perdeu no processo e, talvez, tenha sido um último suspiro de uma Era prestes a chegar ao fim. Quando Episódio I chegou aos cinemas, em 19 de maio de 1999, a Internet já existia, claro, mas ainda estávamos prestes a conhecer as Redes Sociais e sua transformação comportamental. Logo, todo mundo sabia do filme, passamos parte da madrugada na fila para uma sessão às 6 da manhã em Nova York, as fantasias e camisetas estavam lá, assim como a empolgação. Mas foi diferente. Aquele sentimento do final de “Fanboys” parecia imperar. E se não ficar bom? Já havia alguma divisão antes da exibição. E quase ninguém saiu feliz. A perspectiva de um café da manhã gostoso era mais empolgante do que voltar para encarar Jar Jar Binks. Afinal de contas, éramos, na maioria, filhos da onda intermediária de fãs, que cresceu durante o grande vácuo de conteúdo entre a Trilogia Clássica e, na maioria dos casos, só pode assistir os filmes no cinema com o lançamento da Edição Especial em 1997.
Desta vez, seja por conta do hype – do qual me afastei consciente e propositalmente – ou pela perspectiva de um renascimento, as pessoas reagiram de forma diferente. Muito disso se deve aos trailers empolgantes e, acima de tudo, a um fator definitivo em termos de Star Wars: palpabilidade. Em 80% das conversas que tive com fãs, e nem tão fãs, ao longo dos últimos meses abordavam esse elemento e o fato de que J.J. Abrams criaria algo mais “pé no chão e crível”, assim como George Lucas fez com a Trilogia Clássica. De certa forma, e ao contrário do que pode parecer, na verdade, todo mundo só queria aquele George Lucas original de volta; a sensação de realismo naquela galáxia tão distante, algo totalmente inexistente e abandonado em episódios I, II e III. Goste ou não dos filmes, isso é um fato. O CGI ficou mais forte que a narrativa, falou mais alto que personagens e anulou a magia. Quase nada ali é acessível ou relacionável e o resultado foram três filmes esteticamente díspares em relação a seus antecessores.
Pessoalmente, essa promessa de retomada estética e compromisso com os sets e elementos “práticos”, como chamamos os itens reais (criaturas, fantasias, naves, interações e etc), já era a suficiente. Star Wars tem história para se sustentar sem precisar de muito, como o Universo Expandido Clássico – agora rebatizado como Legends e defenestrado do chamado cânone da Saga, ou seja, nada do que aconteceu é considerado válido – provou. O envolvimento de J.J. Abrams também ajudou, mas confesso ter temido muito pela transição da LucasFilm para a Disney. Muita coisa poderia ter dado errado e, falarei mais à frente, o exagero no marketing foi brutal. Entretanto, a equipe escolhida para a produção foi a correta e, quando vi J.J. Abrams apareceu na campanha do Omaze caminhando na frente de uma X-Wing que existia de verdade, em três dimensões, que podia ser tocada e um piloto subia no cockpit, sem nenhum efeito especial, minhas barreiras caíram conforme as primeiras lágrimas tomavam meu rosto.
Comecei a perceber a grandiosidade, e relevância, da Terceira Trilogia quando participei da Star Wars Celebration, no começo do ano. Ok, havia algum jeito do pessoal que gastou uma grana para participar da convenção anual não estar empolgado? Pode apostar. Existe uma diferenciação muito importante entre a relação de fãs irrefutáveis com séries como Star Wars, Jornada nas Estrelas ou tantas outras marcas de sucesso no entretenimento e dos fanáticos pelos mesmos temas. É possível, sim, amar um assunto e, quando necessário ou justo, criticá-lo. Como homem casado, feliz e ainda apaixonado, precisei amar e respeitar tanto as decisões boas quanto as não tão boas assim da minha esposa, e vice-versa. O mesmo vale para Star Wars. Amor envolve compreensão, paixão, detalhismo, crítica, conversa e eventuais brigas, que só fortalecem a relação. Digamos que a nova trilogia tenha sido o período de briga, uma diferença de opiniões, um corte de cabelo controverso ou, para alguns, uma traição. Mas, no fim das contas, nunca gerou separação e só mostrou que, mesmo discordando, o amor é maior e justifica o casamento pelo resto da vida.
Quem cresceu sem esse excesso (positivo!) de séries animadas, jogos, quadrinhos, livros, brinquedos, roupas, acessórios e precisava gravar o filme da Tela Quente, ou virava rato de locadora, se quisesse mais de uma vez no ano, já passou por várias brigas e entende um pouco melhor essa relação. Muita gente, porém, não resistiu a alguns dos confrontos e o amor acabou. Isso também acontece. Perspectivas mudam, modos de pensar também, outros temas se tornam mais relevantes e importantes e todo aquele amor transforma-se numa paixão adolescente, que te faz sorrir de vez em quando e só. Encontrar maneiras de ficarmos felizes é o objetivo da coisa toda, então, escolher caminhos faz parte do processo. Sem nenhum problema.
Porém, existe aquela parcela capaz de amar demais, supervalorizar seu amor e menosprezar o amor dos outros. Aquela parcela disposta a amar incondicionalmente, não aceitar críticas, fazer de conta que as brigas nunca acontecerão, e atacarem – e ostracisarem – aqueles capazes de amar de forma menos doentia. Esse fanatismo é nocivo a qualquer tipo de fã, alias, é por isso que somos fãs, não fanáticos, embora as duas palavras sejam constantemente usadas como sinônimos em textos jornalísticos. O fã adora, o fanático adora sem reservas. O fã compreende e pensa; o fanático não dialoga, é perigoso e, no caso de Star Wars, não entende absolutamente nada sobre o objeto de seu fanatismo.
Embora a dicotomia seja muito presente na Trilogia Clássica e o Bem lute contra o Mal, numa Saga familiar com repercussões galácticas, tudo sempre foi calcado no Equilibro da Força. Na existência balanceada do Bem e do Mal, nos problemas criados a partir do domínio inconteste de apenas um dos lados. De certo modo, Star Wars usou a dicotomia de índoles como ferramenta para mostrar, ressaltar e justificar a necessidade pelo “Lado Cinzento” tão elogiado, buscado por autores e idolatrado por fãs nas produções mais contemporâneas como Game of Thrones, por exemplo. Logo, quando o sujeito opta por ser um fanático sobre qualquer tema e torna-se uma pessoa incapaz de aceitar críticas, ou fazer seus próprios comentários destoantes do material apresentado em tela, ou seja lá qual for a mídia, ele está sucumbindo ao alerta defendido e alardeado pela Saga. Extremos fazem mal. Ser um extremista faz mal.
E isso em si criou um movimento assustador nas redes sociais pré e pós-estreia. A discussão sobre qual fã “merece”, “é digno”, “é verdadeiro” ou “é modinha” eclodiu com toda a angústia digna de uma canção da Avril Lavigne (ou da cantora correspondente da atualidade) e lados se formaram antes mesmo do filme estrear. Então, O Despertar da Força chegou aos cinemas e a segunda onda de confusão foi levantada pelos radicais: “se você viu defeito, você não é fã de verdade”. E um batalhão de radicais alucinados – indivíduos capazes e dispostos a ver apenas aquilo que queriam ver – atacaram em todas as frentes possíveis, contra contas de Twitter, comentários em Podcasts, podcasters, vloggers, críticos e qualquer um “ousado o suficiente” para apontar erros, pontos de discordância ou coisas que não funcionaram bem no novo filme. E a coisa foi feia.
Ouça o Rapaduracast temático sobre Star Wars – O Despertar da Força.
Além de ser um efeito claro da polarização sócio-política pela qual o brasileiro passa, durante sua tardia descoberta como um “ser político”, algo que já acontece aqui nos Estados Unidos há gerações, esse radicalismo – sempre presente no mundo nerd, mas ignorado por se tratar de “bobagem de moleque” – deixou claro o despreparo de toda uma geração para o debate. Quando o gostar de um filme gera ofensas, ameaças físicas, difamação, julgamento depreciativo de toda a vida da pessoa baseada na opinião sobre uma cena, a situação fica ainda mais complicada e sem perspectiva de melhoria, pois o objetivo – se é que existe um – parece ser ganhar a briga no grito, ou na agressão, em vez de aceitar a realidade inexorável da existência das opiniões divergentes. Nesse tiroteio, não existe fã, não existe novato, existe apenas quem discorda e “essa pessoa não é digna de viver”.
Esse pessoal também ignorou que toda a tensão do pré-lançamento de O Despertar da Força fez algo fantástico para qualquer produto como Star Wars: renovou a base de fãs e garantiu sua relevância pelas próximas décadas. E fez TODO MUNDO conversar sobre o assunto. A primeira geração de fãs já era meio crescida quando Uma Nova Esperança estreou em 1977 por aqui e em 1978 no Brasil e ela carregou a empolgação, a mensagem e a magia de Star Wars ao longo de duas décadas. Aí veio a nova trilogia e fez o mesmo, embora surtindo grande efeito mais nas crianças que nos adultos. Com a chegada do novo filme, que abre o salvo de estreias anuais previstas pela Disney a partir de 2016, todas as gerações parecem impactadas pela campanha alucinada de marketing, merchandising, licenciamento e exposição de marca criada pelo estúdio de Burbank para sacramentar sua primeira aventura nos caminhos da Força.
Por mais que tal postura possa, e deva, ser criticada (o saco de laranja com BB-8 e o creme para café com Boba Fett, Darth Vader, Chewbacca, R2 e C-3PO foi um pouco demais), ele mostrou uma mudança brutal de perspectiva entre os lançamentos sob o comendo compartimentalizado da LucasFilm e da 20th Century Fox. A Fox, que lançou tudo até Episódio III, e começou a perder o controle quando as séries animadas do Cartoon Network saíram para home entertainment pela Warner Bros, pensava da seguinte maneira, de acordo com um de seus antigos diretores de marketing no Brasil: “é Star Wars, vai vender de qualquer jeito, não precisamos fazer muita coisa”.
A Disney optou pelo oposto e atolou o mercado na maior blitz de licenciamento já vista na História do Cinema! Depois do fiasco que condenou o divertido John Carter à obscuridade. Curioso notar que, embora os Ewoks sejam fortemente criticados por estarem em O Retorno de Jedi só para vender brinquedos, o recém-chegado BB-8 – que foi o brinquedo mais vendido para o Natal de 2015 nos Estados Unidos, mesmo antes do lançamento do filme – caiu nas graças dos fãs por ser efetivo na narrativa e muito fofo pessoalmente. Sozinho, BB-8 foi o melhor, e maior, acerto da Disney, que inseriu o personagem no filme para ganhar dinheiro e beneficiou todo o produto de forma irreversível. Pelo aspecto fã da história, desgostar de BB-8 seria o mesmo que desrespeitar os prestes-a-serem-aposentados R2-D2 e C-3PO, afinal, ele é o futuro no fronte dos dróides.
Tudo isso aconteceu longe dos olhares dos civis, daquele pessoal que só ao cinema para se divertir e já sai fazendo planos para o próximo filme. Para os civis, tudo foi festa e muita gente entrou no clima de pessoas sorrindo umas para as outras, conversas entre completos estranhos, amigos fazendo planos para assistir juntos, várias vezes, em cinemas diferentes, marcando reuniões pós-filme, com veteranos decididos a apresentarem a Saga para amigos, namoradas ou para os filhos, o dia 18 de dezembro chegou. E a Força despertou.
Reencontrando Velhos Amigos
Mesmo com o ingresso para a madrugada de estreia garantido, numa sessão às 5h15 da manhã, na sala IMAX do histórico Teatro Chinês, meu reencontro com a Força e com os personagens mais marcantes da minha juventude aconteceu dias antes, dentro do Walt Disney Studios, em Burbank. No mesmo dia, as escolas de Los Angeles foram fechadas por conta de uma ameaça terrorista e cheguei a ponderar não assistir, para ficar com a família. Uma amiga salvou o dia e pudemos seguir com os planos. Levei a Lu, minha amada.
Escrevi esse texto sobre a experiência e, claro, começamos a conversar logo que saímos da sala. Ou melhor, depois que tiramos fotos em frente ao pôster gigantesco de The Force Awakens na frente do cinema. Eu sabia que ele estava lá, pois, uma semana antes, havia assistido O Bom Dinossauro com a Ariel, no mesmo lugar. Assistir dentro da Disney foi especial e, ao mesmo tempo, esquisito. Tudo era novo. As pessoas envolvidas, o ambiente, as medidas de segurança – inusitadamente efetivas e pouco invasivas para os padrões Disney – estava energizado e até os funcionários estavam empolgados. Nem o departamento de mídia havia visto o filme.
A mistura de empolgação, nostalgia, alegria, tristeza, dúvida, remorso e uma saudade tão pura quanto emocionante pontuaram a exibição. Era tudo que eu queria ver, mas não tudo que Star Wars podia me dar. Era tudo que me fez cair de amores pela Saga, mas tudo meio repetido, meio povoado por sombras de um ponto de vista de outra época. Os filmes clássicos continuam os mesmos, eu mudei. O mundo mudou. Queria ver mais atualização, mas compreendi, e aceitei, as razões, mesmo sem concordar totalmente com elas.
Revisitar o mesmo universo de Uma Nova Esperança, O Império Contra-Ataca e O Retorno de Jedi arrancou lágrimas rebeldes dispostas a lutar para sair. Era o adulto tentando bancar o durão enquanto o eterno garoto brigava para irromper a cada lágrima. No fim das contas, os dois se abraçaram como velhos amigos. Tudo por causa do comprometimento estético de J.J. Abrams, de efeitos especiais quase invisíveis, e por causa da maior de todas as armas de Star Wars entrar em cena: não, não é a Estrela da Morte. É a amizade entre os personagens.
Acima do drama familiar que move a narrativa de forma mais ampla, o grande efeito da vitória contra Vader no primeiro filme é justamente a descoberta da amizade entre Luke, Leia, Han e Chewie. Tudo mudou dali para a frente, mas, a partir de uma base sólida e bem definida. Novamente, a amizade é a força motriz de O Despertar da Força e a criação do novo quarteto acontece sobre o mesmo pretexto: Rey, Finn, Poe e BB-8.
Mas, a primeira cartada de J.J. Abrams e Lawrence Kasdan – veterano na Saga –, que assinam o roteiro ao lado de Michael Arndt, de Toy Story 3 e Jogos Vorazes, foi dada quando o primeiro personagem abre a boca e Max Von Sydow manda um recado para o público: “Isso vai começar a colocar as coisas em seus devidos lugares”, ou seja, vamos arrumar essa bagunça. Assim como Tarantino faz um auto-elogio no final de Bastardos Inglórios, o novo Star Wars declara suas intenções de forma bem clara. É um reinício, uma retomada e, como já notamos visualmente, a continuação da Trilogia Clássica.
E muito dessa promessa é cumprida ao longo do filme, com cenas de ação de tirar o fôlego, muito bom-humor e novos personagens extremamente carismáticos (a maioria deles, pelo menos). O ponto mais distinto de O Despertar da Força é estarmos diante de uma história de descoberta pessoal. Rey, Finn e Kylo Ren – todos inicialmente apresentados com máscaras – querem, e precisam, saber quem realmente são e a estrada é árdua. Cada dia é uma batalha, cada decisão envolve vida e morte, cada minuto conta e as respostas parecem nunca chegar, numa espera contínua e terrível.
A busca por Luke Skywalker é o catalisador para a vida dos três, que, finalmente, podem agir em prol das mudanças das quais tanto precisam. Eles retratam vários lados da demanda, e da angústia, da juventude atual; de milhares de jovens capazes, e bem treinados naquilo que fazem, mas sem um objetivo ou perspectiva realmente atraentes ou alinhadas com aquilo que acreditam; ou pessoas criadas com fartura e com acesso a tudo que desejam, mas sem estrutura emocional para lidar com a realidade, e os problemas, do mundo lá fora.
Seriam esses problemas constantes na evolução humana? Talvez, mas a estrutura emocional do trio aborda claramente a necessidade por autoafirmação e posicionamento social cobrado da geração criada na Internet e que enfrenta um mercado de trabalho inseguro sobre si mesmo, ainda em conflito pela queda do sonho americano clássico e nova realidade do trabalho desvinculado daquele mesmo emprego pela vida toda.
Por estarem diante de momentos de mudança, nem toda atitude vai ser a mais acertada e os riscos crescem exponencialmente, entretanto, as recompensas valem a pena, especialmente para Rey e Finn, que, de certo modo, compartilham as mazelas e objetivos. Um quer fugir, a outra quer ficar. Nenhum quer enfrentar o problema, nenhum se vê forte o suficiente para fazer isso sozinho. A união é bem-vinda, pois oferece apoio e mais esperança. Rey sofre para sobreviver. Finn opta por não matar. Ambos estão em risco diariamente. São prisões diferentes com o mesmo destino: uma vida imutável e desprovida de razão.
Kylo Ren está no outro extremo, um escravo da influência alheia, inseguro sobre suas próprias decisões, infernizado pelos erros do passado e a incerteza sobre o futuro. A máscara serve apenas para amedrontar ou também para esconder a vergonha e a dúvida? Para encontrar no anonimato a coragem para atacar, matar e castigar com impunidade?
Se transportados para o mundo real, Rey e Finn seriam dois produtores de conteúdo em busca de uma chance ao Sol, mas desesperados por ajuda e suporte, enquanto Kylo Ren seria o comentarista radical de fórum ou redes sociais, que não aceita nenhum argumento contrário e xinga muito quando contrariado. Quando desmascarado, a imponência cai e a dúvida aumenta ainda mais, pois ele aprendeu a viver sob a égide da agressão, sem as ferramentas adequadas para ser alguém independente e seguro.
Por outro lado, o trio clássico está tanto no final da vida física quanto na narrativa. Será? Desgastados, desunidos e desacreditados, Leia, Han e Luke fazem as vezes de tríade espiritual – a Mãe, o Pai e o Espírito Santo – numa galáxia bem menos impactada pela vitória em Endor do que fomos levados a pensar pelos últimos 30 anos. A derrota do Imperador Palpatine não foi o suficiente para garantir a supremacia da República e uma nova vida de paz e quietude naquele universo. E isso leva a uma questão fundamental para os fãs: se durante os 30 anos que separam os dois filmes a República não conseguiu se afirmar, e se livrar do que restou do império, agora sob a égide da Primeira Ordem, um secto militar ultradireitista nascido nas entranhas do antigo Império e liderada por um misterioso Dark Lord – Líder Supremo Snoke, um dos piores nomes de toda a Saga, alias –, será que nossos heróis são tão bons quanto sempre acreditamos? Trinta anos é tempo demais.
Esse reencontro com os velhos amigos os apresenta nos mesmos papéis do início de tudo. Leia lutando contra o Império, Han como contrabandista e Luke isolado onde Judas perdeu as meias – as botas ele perdeu um tantão antes! Talvez como alerta subliminar, pela destruição da Segunda Estrela da Morte ter sido o ponto alto de suas vidas, ou pela simples escolha arbitrária do roteiro, a vida pós-vitória dos três parece ter sido uma sucessão de fracassos e tristezas.
Quando jovens, tudo era possível. Derrotar o Império sozinho estava ao alcance de quem acreditasse na Força. Agora, quando velhos, tudo desmonta? A vida adulta não parece muito bem-vinda ao trio de roteiristas, que carregou os novos atores com boa parte das dificuldades enfrentadas pelo trio clássico em Uma Nova Esperança e deixou apenas um ar nostálgico, quase conformista, relegado aos heróis da Trilogia Clássica. Desta vez, quem completa o círculo não é Obi-Wan, mas sim os jovens de outrora.
Por conta disso, e de vários outros fatores, assistir a O Despertar da Força causa a estranha sensação de se ver uma nova versão de uma velha história. Um grupo de jovens em busca de identidade se vê diante de uma força opressora e, só com grande sacrifício e fé uns nos outros – e uma ajudinha da Força – podem salvar o dia e destruir a grande estação espacial. Já vimos isso, não? Sim. Uma Nova Esperança e, depois, em O Retorno de Jedi (com alguns reflexos em A Ameaça Fantasma)
Ou seja, O Despertar da Força é a terceira, ou quarta, vez que a Saga conta a mesma história, com os mesmos artifícios, com a mesma estrutura. Isso faz de Episódio VII um filme menos empolgante e emocionante? Não. Mas poderia ser melhor, muito melhor. E aqui a diferenciação entre fã e fanático se faz presente. Compreender que essa repetição pode, e vai, ser negativa para a série em longo prazo é entender que, embora seja um reboot da Saga, trata-se de uma continuação de Episódio VI, logo, se alguém assistir a Trilogia Clássica e a Terceira Trilogia em sequência, essa pessoa vai ver o mesmo arco narrativo repetido por três vezes seguidas. Ou seja, pode levantar a pergunta: tudo que Star Wars sabe fazer é descobrir Jedi e explodir estações espaciais graças a alguns pilotos malucos?
A pergunta é válida e interessante, pois, agora, com a perspectiva de vários novos filmes, o recomeço do Universo Expandido e a nova leva de fãs, como a história de O Despertar da Força influencia a Saga de forma mais ampla, se excluirmos a grande cena bombástica do filme? Ela traz novos personagens, com destaque para Poe, Rey e Finn; apresenta um vilão questionável no ato de ser vilão, Kylo Ren; reintroduz uma galáxia em desequilíbrio, afinal, sem a República e com a Primeira Ordem claramente mais equipada e preparada que a Resistência (novamente, municiada apenas com caças X-Wing); e levanta muitas perguntas, mistérios e teorias que vão deixar os fãs malucos pelos próximos anos.
Como filme isolado, é um baita filme, assim como Uma Nova Esperança foi. Como peça no grande quebra-cabeça de Star Wars, nem tanto. Demos muitas voltas, esperamos anos e voltamos ao mesmo lugar. Nesse aspecto, verdade seja dita, George Lucas foi mais corajoso ao tentar contar outra história com a segunda trilogia.
Uma Nova Esperança no Império dos Jedi
Tudo isso, porém, não diminui o fato de que as maravilhas, os acertos, as criações e as opções abertas por O Despertar da Força são fantásticos. Ah, então temos que gostar do filme pelo que ele pode gerar? Não, mas, se como filme isolado ele arrebenta, e com uma produção mais constante e reestruturada de filmes – tanto da Terceira Trilogia quanto os filmes solo como Rogue One, que estreia no ano que vem –, o futuro é promissor.
Visualmente, O Despertar da Força é fantástico, rendendo elogios de vários diretores de fotografia aqui em Hollywood. Um amigo meu, que prefere não ser identificado, mas é DP de séries de primeira linha por aqui, disse que o trabalho é digno de Oscar. Por algumas razões: o novo Star Wars foi filmado em película, e chegou a distribuir cópias em película, foi projetado e executado de acordo com o projeto visual definido pelo primeiro filme de Lucas que, embora tenha sido filmado por três ou quatro diretores de fotografia, criou uma estética muito influente; por ter deixado os efeitos especiais como elemento secundário e privilegiado a fotografia tradicional; por garantir um nível de inserção gigantesco perto dos filmes mais recentes do mesmo gênero; e, claro, por ser lindo!
Esse texto do Rob Gordon, meu parceiro de podcast no Gente que Escreve, descreve muito bem esse sentimento, de reencontrar algo fantástico e pensar nas possibilidades. E que possibilidades. Pela primeira vez, estamos diante da perspectiva de o segundo filme ser focado em Luke Skywalker, como Jedi. Já vimos muito do aprendiz, mas, agora, não há nada mais a ser aprendido e veremos Luke em toda a sua glória.
Mas, qualquer coisa superultramegalegal só será possível por conta de uma coisa: a nova base parece sólida, com as peças certas em ação e uma problemática que ninguém faz ideia do que seja. Afinal, por que existia uma Resistência apoiada pela República, e não um exército oficial? Quem é o Líder Supremo Estuque… Babaduquê… Coke… Snoke!? Por que Kylo Ren deu o primeiro dos grandes chiliques e foi para o Lado Negro? Muitas perguntas. Mais dois filmes para respondê-las.
A base estética também é muito importante, pois ela vai guiar todo o visual da Saga – e os outros filmes – daqui para a frente e isso já vale ouro. Finn, Rey e Poe estão bem definidos e, mesmo com Kylo Ren sendo uma incógnita – e razão de ódio, não de adoração ou veneração como Vader foi para as primeiras gerações de fãs – as perguntas são o suficientes para manter o interesse.
Por esse aspecto, a decisão de J.J. Abrams de não dirigir os demais filmes começa a fazer sentido, pois, assim, pessoas diferentes trarão perspectivas diferentes para a temática e, se bem feito, os personagens só tem a ganhar em profundidade e envolvimento. E, depois do que ele fez com o remake problemático no segundo Star Trek, é até melhor que não tenha a chance de tentar fazer um remake de O Império Contra-Ataca, alias.
A Terceira Trilogia também abre caminho para a maior representatividade entre seus personagens. Enquanto na Trilogia Clássica, Leia e Mon Mothma eram as únicas mulheres presentes em todos os filmes – e em papeis relativamente menores –, os novos filmes vão muito além da figura de Rey (Daisy Ridley) como protagonista, pois há mulheres em vários papéis, cenas de batalha e em posições de destaque, incluindo duas storm troppers – entre elas Capitã Phasma, uma das personagens mais mal aproveitadas do filme. Por que isso é importante? Pela mesma maneira que Finn ser o primeiro protagonista negro também importa. Star Wars sempre teve uma mensagem inclusiva, mas, na prática, era dominada por “homens brancos” e que gerou aquela piada genial em Procura-se Amy. O mundo é mais amplo e deve ser mais igualitário que isso, então, é muito interessante e positivo ver esse reflexo na Saga.
Confissões do Lado Negro
O Despertar da Força é empolgante, cheio de vida e realmente marcante, mas, como tudo na vida, tem problemas. Alguns deles podem ter um aspecto pessoal, mas, se analisados pela ótica da estrutura narrativa, acabam levantando questões bem pertinentes. O maior de todos é Kylo Ren. Embora Darth Vader só tenha se afirmado como Vilão entre Vilões em O Império Contra-Ataca (e rolou um terremoto no momento em que escrevi essa frase), e fosse uma espécie de pitbull a serviço do Grand Moff Tarkin, ele já era um vilão propriamente dito.
Kylo Ren mistura a superficialidade de Vader em Episódio IV, com os exageros psicológicos e adolescentes de Episódio III – único elemento a ser herdado da nova trilogia –, e resulta em algo aquém de um vilão: ele é um garoto mimado, que tem chiliques de raivinha (gerando cenas hilárias, alias) e não impõe respeito, não impressiona, tampouco faz a função de vilão. Logo, O Despertar da Força é um filme sem vilão declarado. O Mal a ser extirpado é uma mistura da raiva incontida de Kylo, com a manipulação de Snoke e a insanidade de Hux. Cinematograficamente falando, é como se o verdadeiro vilão fosse o medo de errar com a história, então, o jeito de vencê-lo foi fazer algo comprovadamente eficaz.
E isso em si é um problema bem cabeludo, pois deixa o filme dependente da ligação do público com os filmes anteriores e com a raiva gerada pela decisão sombria de Kylo Ren e pode afetar sua sustentação ao longo prazo. Ah, mas tudo que importa é a experiência. Ok, mas continuaremos a assistir esse filme por anos e ele faz parte de uma narrativa que se propôs a continuar a anterior, logo, tudo que acontece ali, agrega ao cânone já tão debilitado com o fim do Universo Expandido. Aquela impressão de oportunidade perdida, assim como com Darth Maul, parece pairar sobre esse aspecto.
Por isso, Star Wars continua refém de sua maior e mais temida criação: Darth Vader. Nada e nem ninguém parece capaz de tomar seu lugar ou criar uma relação igualmente marcante com os espectadores desde a Trilogia Clássica. Claro, esse não é objetivo de Kylo Ren, mas as comparações são inevitáveis, embora descabidas. Ele foi uma figura chave no sucesso da Saga e tornou-se a mais emblemática na cultura pop, logo, será sempre o veterano rabugento que olha para a criança de longe, fazendo cara feia e julgando tudo. Talvez por isso, J.J. e sua turma tenham decidido não tentar fazer melhor.
A escalação de Adam Driver, assim com a do ótimo Domhnall Gleeson, foram as menos efetivas de todo o filme. Adam simplesmente não decola, com ou sem máscara; incapaz de gerar muita emoção. Gleeson foi mal escalado e nem mesmo no momento mais insano de todos consegue transmitir a imposição de um líder militar. O contra-argumento é que tanto Kylo quanto Hux sejam marionetes de Snoke, que seduz os jovens mais suscetíveis para servirem a seus propósitos escusos e maléficos, logo, pessoas com personalidade e mais experiência não seriam facilmente influenciáveis pelo Dark Lord com Cara de Bolinho Que Não Deu Certo. O que faz algum sentido, pois todas as instalações da Primeira Ordem são operadas por gente aparentemente mais nova, em sua maioria.
E isso nos leva ao outro problema: Líder Supremo Snoke. Nome ruim, único elemento descaradamente falso em todo o filme e presente apenas para criar perguntas e alimentar o mistério. Ele começa com uma ideia acertada, ao projetar o holograma de forma gigantesca, e opressiva, para estabelecer a relação de dominância com seus comandados. E, mesmo sendo um holograma, a cabeça deformada e a característica 3D tira qualquer impacto que ele poderia ter causado, justamente fugir da promessa da estética palpável. Mesmo a primeira versão de Palpatine, pré-Edição Especial e sem Ian McDiarmid, era mais realística que a apresentação moderna – e sem limitações tecnológicas – de Snoke.
Curiosamente, os maiores problemas estão ligados à Primeira Ordem e ao Lado Negro. Nenhuma de suas representações causou grande impacto e, como disse, mesmo que seja um grande preambulo para o próximo filme, podem prejudicar a longo prazo.
Só é impossível deixar de pensar que, se a LucasFilm não estivesse envolvida, ela seria a primeira a gritar “Plágio de Uma Nova Esperança!”. Inevitavelmente, esse filme pode vir a ser conhecido como “Episódio que foi muito legal e deveria ter sido muuuito mais original”.
WOO-HOOO
E para encerrar, a nota alta do filme. Poe Dameron e suas fantásticas X-Wings. Que delírio! Se as batalhas das duas Estrelas da Morte já tiraram o fôlego, toda vez que Poe Dameron aparece no controle de um caça estelar, coisas maravilhosas acontecem. Ele é responsável por boa parte do humor – ao lado de Finn, em atuação inspirada de John Boyega – o personagem de Oscar Isaac carrega o espírito da Trilogia Clássica em cada segundo em cena, às vezes sendo Han, às vezes sendo Luke, mas sempre aproveitando as oportunidades e carregando suas cenas com louvor. A atuação Isaac promoveu uma mudança radical na minha relação pessoal com o autor. Eu não suportava o sujeito. Na maioria dos contatos com seu trabalho, ele estava gritando, era caricato ao extremo e buscava uma intensidade que nunca funcionava. Com Poe Dameron, ele estava diferente, mais contido quando necessário, e me convenceu. Fiquei muito feliz por isso.
As novas X-Wings são tanto uma evolução direta das naves utilizadas na Trilogia Clássica, como também prestam homenagem ao gênio visual do saudoso Ralph McQuarie, que desenhou as artes conceituais para os filmes e foi o grande responsável pelo espírito visual da Saga. Se elas já melhoraram muito visualmente, as naves transformaram-se em armas muito melhores graças à nova tecnologia e aos efeitos especiais. A empolgação é garantida, o dinamismo é ininterrupto e ainda há espaço para reforçar a superioridade delas em relação aos caças imperiais que, mesmo melhor equipamos, ainda ficam em desvantagem contra um bom piloto de X-Wing.
Vale notar que existe apenas uma batalha espacial em O Despertar da Força, já que as maiores sequências de combate acontecem perto da superfície dos planetas envolvidos na trama. J.J. aprendeu a lição com a corrida de Pods e lembrou que as batalhas devem acontecer na hora certa, sem exagero, e devem ter função dramática e é exatamente isso que vemos em Episódio VI. Vemos e sentimos o efeito de uma batalha pela sobrevivência, sem ficar por lá mais do que o necessário.
Como fã da série Rogue Squadron, devoto de Wedge Antilles e, agora, melhor amigo do Poe Dameron – e dono de cinco modelos de X-Wings, inclusive duas Black Leader –, vibrei com cada looping, câmera em primeira pessoa, manobra maluca e reação de Poe. Ele foi, de fato, o representante da platéia dentro do filme.
Ele vibrou, sofreu, chorou, queria ter feito muito mais, mas, no final, cumpriu seu papel e está pronto para outra.
Falta muito para 2017?
Que a Força Esteja com Você, Sempre!
Ótimo texto. Bem pé no chão, mas sem perder a carga emocional que SW tanto desperta. Só permita-se discordar (bem de leve) em um ponto: eu concordo que a repetição (ou requentamento) de roteiro é massante e faz a saga perder a força se analisada como um todo. Mas um atenuante é: SW é uma saga que tem como pano de fundo um conflito armado. Nesse cenário, o objetivo sempre é destruir a maior ameaça militar do inimigo. Logo, é plausível essa mesmice sob esse ponto de vista. Mas concordo que, ao bater na mesma tecla, acaba-se caindo na repetição. Não seria mais interessante ver uma batalha como em Jakku, por exemplo? Ou grandes embates em uma área urbana-espacial? Era isso, abraço Barreto!
Muito boas as suas colocações. Como fã, gostei muito do filme, a ponto de ter ido quatro vezes ao cinema assistir. Concordo em parte com os defeitos apontados; alguns me incomodaram também, outros nem tanto. Espero que os próximos filmes sejam ainda melhores, embora esse episódio tenha seu lugar garantido dentro do coração, por apresentar protagonistas novos, carismáticos e diferentes, representando segmentos antes relegados à papéis secundários e caricatos. Pela primeira vez, em uma franquia tão grande, pude olhar para um personagem e me identificar diretamente com ele. Enquanto Finn tirava a armadura de stormtrooper e passava por aquela transformação, alguma coisa dentro de mim sofria uma mutação dentro do cinema. E nas horas que ele liga o lightsaber eu lutava junto. Aguardo os novos filmes com ansiedade, esperando que sejam tão bons quanto, tecnicamente, e que tenham histórias mais originais, respondendo perguntas e levando-nos à lugares ainda mais interessantes e empolgantes.
Forte abraço e mais uma vez parabéns por todo o seu trabalho.