Há exatos três anos, um fim do mundo incomum, grandioso e, bem, brasileiro foi decretado na literatura nacional. A chegada de “Filhos do Fim do Mundo” (Casa da Palavra/LeYa, 2013) pode significar muito mais que um simples lançamento literário e, embora minha visão seja claramente partidária à obra, vejo vários elementos que vão muito além da minha participação como autor. E tudo começou como uma ideia.
Entretanto, antes de falar um pouco sobre o passado, acredito que o presente seja o suficiente para explicar muito do que vejo sobre a obra, sua trajetória de sucesso comercial e o que ela pode representar daqui para a frente. Estou participando de um curso literário aqui em LA e os alunos submetem material para avaliação. Uma das instrutoras, apoiada por vários colegas de classe, fez a seguinte constatação do texto em inglês que submeti: “Gostei, pois você escreve como uma pessoa normal”. Detalhe, o material era de Space Opera e essa pessoa declarou não gostar do gênero, o que deixou a vitória um pouco mais saborosa.
E o que isso tem a ver com o aniversário de “Filhos do Fim do Mundo”? Bem, tudo. Pois essa é a maior característica inerente à obra e ao gênero em si. Embora fã declarado de FC Hard, nunca fui de escrever nesse gênero, pois ele está além do meu interesse, e habilidade, como autor. Aceitar as limitações é importante, sabe. E essa é uma delas. Mas eu sempre gostei de trabalhar com ideias, com efeitos sociais, com comportamento… com pessoas. Escrever “Filhos” foi uma tarefa meio maluca, pois o grosso da redação aconteceu durante um verão bem intenso aqui em Los Angeles, precisei mudar minha estação de trabalho para a sala de estar, com televisão e família por perto, e um caminhão de incertezas por todos os lados.
Ok, mais riscos que incertezas, mas, mesmo assim, eles estava à espreita. Todo mundo fala da questão dos nomes, alguns elogiam pela coragem, outros criticam pela comparação descabida a Saramago (Ensaio Sobre a Cegueira, meu favorito dele, não foi o primeiro e nem será o último romance com personagens sem nomes), mas ele foi marcante para mim por conta do risco. Cresci – pessoal e profissionalmente – vendo o fandom brasileiro de Ficção Científica Brasileira tentando, tentando e sempre quebrando a cara na hora de escrever FC comercial por aí. Foi nesse período que me apaixonei pela obra do hoje grande amigo Gerson Lodi-Ribeiro, por exemplo; conheci André Carneiro, Ivan Carlos Regina, Carlos Orsi, Roberto Causo e Jorge Luis Calife e tantos outros autores que, por experiência, criatividade, força de vontade ou tudo misturaram, sempre escreviam muito e muito bem. E aí vem a ironia. Por mais que o saudoso Carneiro, por exemplo, seja um dos pilares da produção nacional, quase ninguém fora do nicho conhece o trabalho dele. Desses, o mais famoso é o Calife, mas, mesmo assim, de forma moderada. O que não muda o tamanho do pecado e da injustiça. As grandes exceções, mas por outras razões, formas e conteúdos, são Bráulio Tavares e Max Mallmam, que existem dentro da FC, mas transcendem suas barreiras e não dependem dela. Em outras palavras, são escritores de marca maior. Mais próximos do mainstream que do nicho.
Esse cenário foi ao mesmo tempo problemático e facilitador do processo que culminou com “Filhos do Fim do Mundo”. Se a qualidade nunca faltou – e digo isso sem pestanejar – por que esses livros quase nunca rompiam barreiras e se tornavam sucessos comerciais? O maior culpado disso é o mercado editorial, que nunca soube trabalhar a Ficção Científica nas livrarias brasileiras. Vender Asimov, Clarke e clássicos do gênero é fácil. Sempre foi e sempre vai ser. Mas trabalhar o autor nacional de FC – submetido à combinação mais cruel de preconceitos mercadológicos do país: ficção científica, nacional, desconhecido, nerd, sub-literatura – ainda é um dos grandes mistérios a serem solucionados. Tentei fazer a minha parte como editor, com o selo Unicórnio Azul, que resultou na publicação do clássico “Outros Brasis”, de Gerson Lodi-Ribeiro, e “A Mão Que Cria”, de Octávio Aragão, que está prestes a ganhar uma continuação. Ambos mereciam retornar ao mercado, alias. Mas a iniciativa em si foi interrompida pelo fator acima: é difícil criar uma mentalidade sistemática e constante de incentivo ao gênero. Infelizmente, o mercado depende da equação que só reconhece – e recompensa – explosões de venda.
Enfim, essa ideia continuou martelando na minha cabeça por um tempo até que pensei em sair dos bastidores e encarar a fera frente-a-frente (se bem que, como editor e jornalista especializado, já havia vivenciado minha cota de batalhas e guerras por causa disso). Nesse momento, vi algo que, por conta da trajetória e do momento tecnológico, nenhum desses grandes autores tinha: exposição. Não dá para inventar exposição da noite para o dia. A Internet até gosta dos virais, mas a exposição que converte um curioso em comprador demora mais. Ela precisa ter alguma base.
Foi isso que percebi e, com certeza, o mesmo que a coordenação da LeYa viu. Era uma chance de trabalhar o gênero com uma base inicial. Mas estava na hora? Só saberíamos tentando. Arrisquei muito com a questão dos nomes mas, como mencionei, a maior de todas as apostas – que passou desapercebida por resenhistas e leitores, afinal, era a grande arma secreta do livro – foi o fato de que foi escrito “por uma pessoa normal”. Essa foi uma decisão meio unilateral e responsável por muitas noites insones. Fugi de explicações técnicas, fui quase espartano nas descrições e implementei cortes nitidamente cinematográficos em várias cenas. Tudo para chegar nesse resultado: uma história contada de igual para igual. Uma história de FC que pudesse ser lida por qualquer um, ou seja, uma narrativa de acesso. Aquele primeiro livro que abre os horizontes e leva o leitor aos clássicos, às maravilhas de outros mundos, civilizações e perspectivas.
Sentia muito a falta de um livro de acesso ao gênero no Brasil e, além de tudo, um livro vendido como mainstream, não apenas nos encontros do fandom ou no site do autor (nada contra, eu só acredito que todos mereçamos ir muuuito além disso!). De certo modo, foi a lição aprendida com o André Vianco, pois “Os Sete” falava com essa voz. Goste ou não, ele desceu do pedestal e conversou com o público dentro da narrativa e isso envolveu, dando a ele o status e reconhecimento merecido que tem hoje.
“Gostei, pois você escreve como uma pessoa normal”
Pronto, fui lá e escrevi o livro. Foi um processo maluco, meio que sem processo, na verdade. Capítulos inteiros saíam em um ou dois dias; uma transição em especial demorou seis meses entre um parágrafo e outro. Mas o livro esticou, diminuiu, mudou e foi ganhando ritmo. Ritmo de filme. Fiz de propósito também. Estava no auge das minhas aulas de roteiro e foi inevitável ver as duas modalidades se influenciando. Isso, porém, ajudou para ampliar a voz da “pessoa normal” e o elemento visual inerente à obra. Ele tinha tudo que precisava ter para vencer essa barreira.
Mas eu sabia que o caminho seria difícil, pois era um primeiro volume, de um primeiro autor, para primeiros leitores, no primeiro mês do ano, e primeiro lançamento de um selo editorial. E eu estava certo em quase tudo.
A exposição de mídia por conta do meu nome como jornalista, podcaster e sujeito online realmente ajudou o livro (até hoje saem resenhas sobre ele e já tivemos mais de 80 matérias comentando a obra, por exemplo), fora os podcasts dedicados a ele por grandes amigos como o RapaduraCast, Radiofobia, Ghost Writer, Iradex, Ultrageek e tantos outros; o fácil acesso à obra também caiu como uma luva para leitores de primeira viagem nesse gênero maluco que é a Ficção Científica; a “embalagem” mais comercial e menos “livro difícil, cuidado!” (que algumas editoras antigas insistiam em adotar) abriu portas e fez com que “Filhos do Fim do Mundo” fosse um dos livros nacionais de FC mais bem sucedidos comercialmente da última década.
Eu também estava certo sobre os problemas.
Se a Internet é um reality show constante para saber quem é mais merecedor de atenção, a literatura dentro da Internet é uma versão turbinada, e mais maligna, disso. O autor de primeira viagem sofre e muito. A descrença é a primeira reação garantida. A comparação injusta com obras estrangeiras é a próxima. E o crime de ser brasileiro ainda é inafiançável. Longe de criar intriga, é só a real mesmo. Temos que aceitar.
O júri popular de booktookers e bloggers especializados é rápido em decretar a vida e morte de qualquer livro, dependendo da habilidade do autor de dar aquilo que o avaliador quer. E isso é bem complicado, pois esse império da subjetividade pode limar muita coisa boa – de vários autores – pelo simples fato do “prefiro livro assim, então livros assados não prestam”. E por que comentar isso é importante? Pois faz parte da lição, do processo de maturação de qualquer profissional e obra. Eu e “Filhos” lutamos bravamente contra episódios de ataques desmedidos, indiferença dos portais “mais sérios” (embora a Rádio Estadão, a CBN e a Bandeirantes tenham sido fantásticas conosco) e a blindagem assustadora dos enlatados a uma geração que só quer ler o mesmo livro.
O autor nacional tem que passar por uma provação descomunal, pois ele tem a “obrigação” de ser melhor que Tolkien, Rowling, King e Gaiman… juntos. E ainda precisa mostrar que é digno de sequer ousar escrever. Pode ser bem desanimador, mas isso dá forças e aumenta ainda mais a obstinação para continuar.
E sobrevivemos a tudo isso. Com um pontinho de vida, mas passamos de fase.
Hoje, três anos depois do lançamento e um ano depois do anúncio da adaptação para a TV, que já mudou de produtora duas vezes e voltou ao desenvolvimento, “Filhos do Fim do Mundo” tem um futuro promissor pela frente. Pois é, publicar, promover e fazer dar certo é apenas o princípio. Esse livro escrito “por uma pessoa normal” abrir uma porteira grande demais para não ser ignorada. Ele mostrou que o sucesso da Fantasia no Brasil teve um efeito colateral bacana: as pessoas querem ler FC, seja para quebrar um pouco a rotina do mesmo gênero, seja para ampliar ainda mais a tara por universos e realidades fantásticas.
Os números de vendas são incontestes. A vitória do Prêmio Argos de Literatura Fantástica em 2013, como Melhor Romance, também deveria ser, pois, além de ser o único prêmio nacional da Literatura Fantástica, naquele ano, ele colocou um livro de FC à frente de sucessos de venda igualmente relevantes e comerciais como Eduardo Spohr e Affonso Solano. Olha o escopo, “Filhos do Fim do Mundo” não ganhou contra um ou dois livros que ninguém ouviu falar. Não, naquele ano, dois dos maiores best-sellers da literatura fantástica brasileira estavam no páreo. Demérito nenhum aos dois, claro. É uma questão de contexto. Porém, o mercado dá pouca importância ao prêmio que é referência do gênero no Brasil e é organizado anualmente pelo Clube dos Leitores de Ficção Científica (www.clfc.com.br; a inscrição é gratuita e só membros podem votar, participe!), o que é uma pena. Mas sabemos que a valorização desses elementos só vai acontecer quando alguém explodir em vendas. Será?
Quando existe um cenário promissor, com casos comprovados de sucesso comercial e qualidade de conteúdo, e a amostra do surgimento de um público que pode, e quer, consumir um pouco a mais do que as distopias e ficções científicas vindas dos gringos, o próximo passo deveria ser óbvio: apostar de forma organizada. Os livros estrangeiros, por exemplo, já chegam aqui aperfeiçoados por conta do duro processo editorial – e o teste de mercado! – aplicado a eles durante o lançamento na língua mãe. Se o problema é a dúvida na qualidade, por que não criar um processo mais duro, exigente e minucioso com os livros nacionais de FC? Isso eliminaria qualquer dúvida. Ainda é difícil imaginar um mercado que venda tão bem Andy Weir, mas desconheça Gerson Lodi-Ribeiro, que escreve muito melhor que ele, por exemplo.
E a eliminação do medo da editora em ter um livro “cabeça demais” teria consequências diretas e fantásticas. O público ficaria feliz com o resultado e compraria mais. Mas ainda estamos presos a esse círculo vicioso e maldito. Leitores não compram tanto por ter medo de ser ruim, editoras investem menos por causa do comportamento do leitor, autores não tem mercado para desovar suas produções, logo, autores bons vão fazer outra coisa da vida. E o ciclo recomeça.
Porém, com a proximidade da primeira reimpressão de “Filhos do Fim do Mundo” e as negociações com a TV, fica mais do que claro que tudo isso já passou da hora de mudar. Alias, quem ignorar a mudança só está perdendo dinheiro, pois a performance do meu romance comprova essa realidade. Claro, ele não redefiniu o mercado, pois, infelizmente, não é um livro sozinho que vai fazer isso no Brasil. O Spohr não mudou a Fantasia sozinho, por exemplo, ele surgiu como parte de um movimento forte e pesos pesados de venda como Raphael Draccon e Carolina Munhoz. O mesmo precisa acontecer com a Ficção Científica, mas “Filhos do Fim do Mundo” corre o risco de ser um soldado solitário no topo da colina vitoriosa, sem ter para quem mostrar sua bravura.
Escrevi “Filhos” com o intuito de contar uma história interessante, envolvente e cheia de significado. Coisas que aprecio num bom livro. Escrevi de coração e sem saber o que aconteceria. Conhecer demais o mercado deixa a gente assim, ressabiado. Passei meses convencendo a mim mesmo de que a média de venda de livros de FC é de mil exemplares, em dois ou três anos, e que isso já seria uma vitória. Vendi isso no primeiro trimestre! Mas nunca parei de pensar no dia seguinte, na batalha seguinte e na esperança de que, cada vez mais, leitores descobrissem esse livro “escrito por uma pessoa real”.
Sou muito crítico em relação ao livro. Se pudesse, mudaria muita coisa. Seria interessante colocar o autor de 2012 frente-a-frente com o autor de 2016. Acho que os dois bateriam um bom papo, pois ambos sabem: carreiras são construídas e o próximo livro sempre será melhor que o anterior. Talvez por se compreenderem tão bem, o mais novo sorriria com as broncas do mais velho e com as próprias escorregadas. E, talvez, por ainda terem o mesmo sonho, olhariam para aquela colina e veriam um estandarte orgulhoso de um livro que, para muita gente, é sobre o fim do mundo, mas, que bem lá no fundo, fala sobre recomeços e sacrifícios. Às vezes entendemos e concordamos, às vezes achamos tudo surreal, mas, sempre precisaremos deles. Recomeços e sacrifícios.
O nome disso é vida.
Sobre o autor:
Fábio M. Barreto é escritor, jornalista e roteirista em Hollywood. Criou e ministra os cursos de capacitação C.O.N.T.E. – Curso Online de Técnicas para Escritores e Escreva Sua História e é co-apresentador do podcast literário Gente Que Escreve. É pai, marido e nerd convicto.
Eu fico até emocionado lendo esse texto. Eu lembro as primeiras vezes que falei contigo, quando o Filhos mal tinha saído das gráficas da LeYa e eu me aproximei “aproveitando” o início, imaginando que quando você fosse um escritor premiado e reconhecido nacional e internacionalmente nem daria mais bola pra ninguém. Tive o prazer e honra de ser um dos primeiros a ler o livro impresso e resenha-lo. Tive a surpresa de perceber que você era um cara bem mais humilde do que se podia imaginar. A bola de neve foi descendo a montanha, e foi só crescendo no cenário literário, vieram as resenhas, as entrevistas, os prêmios, e você permaneceu atencioso e preocupado com aqueles que viessem após. Hoje, distante de qualquer dúvida, você é um dos maiores escritores de ficção científica do Brasil, e um dos maiores representantes da classe literária jovem brasileira no mundo. Um dos poucos preocupados com o que será do nosso cenário futuro, e motivado com a ideia de fortalecer um mercado que, infortunadamente, é fraco desde seu nascimento. Eu conheci desde o início um cara extraordinário, fora do normal, uma inspiração de verdade. Filhos do fim do mundo faz aniversário e o parabéns é para toda a literatura. Mas as palmas, são só para você.
muito bom tudo que li ate agora.sem querer ser presunçosa,mas sim uma grande sonhadora…quem sabe o meu que esta no forninho,ou melhor ta sendo amassado com muito carinho, quem sabe não vá fazer companhia ao seu soldado solitário…creio que os sonhos nos movem….grande abraço…e parabéns….