Censura: o último suspiro

Enquanto boa parte da cobertura tecnológica se dedica a antecipar e discutir o novo cacareco do momento, seja ele qual for, alguns aspectos da evolução da tecnologia ficam em segundo plano. Um deles prega o final da censura, uma prática inviável na comunidade virtual globalizada.

por Fábio M. Barreto, de Los Angeles

Relembrar fatos históricos, ou de um passado célebre, quando se pensa em evolução é uma ferramenta bastante útil. Citamos as mazelas humanas na era pré-penicilina quando falamos nos avanços da medicina, ou os efeitos visuais caseiros e manuais criados por George Lucas ou Stanley Kubrick em seus grandes filmes nas comparações com os prodígios gerados por computador na Hollywood dos remakes. Por vezes, porém, esquecemos das mudanças mais radicais – cada vez mais constantes na dinâmica moderna – e, dentro da contagem mais ampla dos anos, instantânea. A queda da censura aconteceu e ninguém percebeu, aliás, já é passado; pois vivemos os primórdios da definição de uma vida na qual a informação não pode ser contida, não tem dono, e desconhece barreiras.

Algumas gerações encaram o próprio termo – censura – como algo tenebroso. Quase um tabu. Medo de tempos sombrios, dos anos da Ditadura Militar brasileira, ou mesmo Argentina. Essa memória se dissipou ao longo de poucas décadas e a inexistência de novas tentativas de Golpe. O cinema engajado se esforça na luta para manter a memória viva. Lembrar para não repetir o erro. Nunca esquecer, para não sofrer. Na prática, a questão é outra: a geração da internet não faz idéia, ou melhor, é incapaz de compreender um mundo sem acesso à informação. Com a telefonia móvel cada vez mais avançada, não se passa um minuto sem consumir ou produzir conteúdo. Censura para eles é resolvida ao selecionar a opção: “tenho mais de 18 anos” no site impróprio. Ou então a “classificação indicativa” dos filmes nos cinemas. Bem, essa também caiu, afinal, pode-se ter acesso a qualquer filme – seja ele para maiores de 16, 18 ou 21 – sem sair de casa.

Os pais podem controlar o material. O Windows oferece ferramentas. Diversos sites com “especialistas familiares” recomendam material adequado e tentam, numa luta inglória, conscientizar sobre os perigos online. Essa batalha já acabou faz tempo. O momento requer compreensão da ferramenta e meios de minimizar seus efeitos. O conteúdo está ali, disponível. Dar base de caráter, moral e educação é a melhor arma contra a banalização ou idiotização, nesse caso. De qualquer forma, essa censura deixou de existir.

Assim como a pior aplicação da palavra também desapareceu, ou melhor, sua efetividade. Governos autoritários impõem suas vontades em países desajustados e o YouTube pode ser bloqueado pela Embratel [como aconteceu no caso da modelo e ex-celebridade relevante Daniela Cicarelli], mas a transmissão da informação não pode mais ser interrompida sem a ocorrência de uma hecatombe nuclear. Especialmente quando a causa é nobre. É a Skynet em sua melhor concepção.

Péssima notícia para o jornalismo, que perdeu a exclusividade na produção de notícia, ou melhor, de conteúdo [seguindo o termo mais moderno]. Qualquer celular, blog ou conta do Twitter oferece o mesmo serviço. A qualidade é o diferencial, mas não vem ao caso. Jornais podiam ser censurados, ameaçados e retirados de circulação; assim como canais de TV e emissoras de rádio podiam ter seus sinais cortados. A mídia tradicional é controlável em situações extremas, por isso, a imprensa sempre foi grande alvo de regimes ditatoriais. As vozes precisam ser caladas.

Como fazer isso na sociedade moderna, na qual cada voz pode ser ouvida? Impossível. De maneira alguma essa nova realidade impede opressão, violência, genocídios e tragédias, mas suas histórias, invariavelmente, atingem os meios de comunicação. Em diversas ocasiões, TVs e outras mídias clássicas, utilizam esse material para abastecer seus noticiários. Foi o caso do levante popular em Burma, em 2007, que resultou no documentário Burma VJ, indicado ao Oscar de Melhor Documentário em 2010. Ou então das diversas imagens transmitidas do Irã durante as manifestações pós-eleitorais no ano passado.

Acontecimentos como esses movem a opinião popular podem provocar reações externas capazes de mudar doutrinas ou melhorar a vida de povos inteiros, ou, pelo menos, apresentar suas condições ao resto do mundo. Pouca gente sabe que existe um país miserável chamado Burma e muito menos que sua Junta Militar utiliza violência e medo para controlar o país. Não é sempre, afinal, a ONU pouco pode fazer por sua postura neutra e não-ativa, mas é preciso acreditar que, assim como a censura, governos militares autoritários, opressores e letais deixem de existir. Seja qual for sua orientação ou doutrina política.

Transmissões via satélite, maior capacidade de vídeo e imagens dos celulares e uma rede especializada em fragmentar informação, locais de armazenamento e pontos de retransmissão são o resultado da construção orgânica, e não planejada, das chamadas redes sociais. Mesmo sendo utilizadas para fins pouco produtivos e baseada na transmissão de inutilidades na maioria das ocasiões, nesses momentos pontuais elas fazem toda a diferença. Parar um indivíduo é possível e rápido; interromper uma emissora é mais complexo, mas a fórmula já foi testada e comprovada; porém, felizmente, não existe nada capaz de interromper o gigantesco fluxo de informação, opiniões e mentes dedicadas ao simples ato de se comunicar e consumir informação.

Mesmo sem querer, a internet realizou a maior de suas revoluções sem tirar o traseiro da cadeira. É a maior entidade artificial “viva” existente depois da biosfera da Terra, porém, está longe de ser autoconsciente e realmente transformadora. A censura caiu, a liberdade da informação – seja ela boa ou descartável – reina, mas ainda não sabemos o que fazer com essa conquista. Afinal, mesmo massacres como os de Burma, o terremoto no Haiti ou a repressão de Teerã se transformam em hits momentâneos e desaparecem tão logo o próximo vídeo chocante ou morte inesperada chegue aos olhos hiperativos e hiperconsumistas dos internautas.

Entretanto, um novo tipo de moderação se faz presente na internet: o autopatrulhamento. Com tanta informação disponível, e tantos nichos especializados envolvidos, a informação errada, a notícia inventada, o vídeo falsificado e tantas outras modalidades são rechaçados pelos indivíduos dessa comunidade. É a censura produtiva: preste atenção no que diz, ou sofrerá as conseqüências. Revolução é um passo, maturidade define se ela valeu a pena ou não.

Liberdade é uma dádiva, mas nunca é concedida acompanhada por manual de instruções. E não adianta procurar a resposta no Google ou perguntar tno Formspring.

[ATUALIZAÇÃO: minutos depois da publicação desse texto, fui informado que um colega do entretenimento, o dublador Guillherme Briggs, deixou de participar do site Twitter depois de sofrer ameaças pessoais por conta da pior espécie existente na internet: o chamado Troll, sujeito agressivo e invasivo que assedia suas vítimas. Maior prova não existe. A censura pode ter caído no sentido ruim da palavra, mas o excesso de liberdade permite a existência de aberrações como essa. Fica aqui o apoio ao colega e profissional. FIM DA ATUALIZAÇÃO].

1 comentário em “Censura: o último suspiro”

  1. Muito bom Barretão. Apesar de não concordar com tudo, acho que você levantou um detalhe fundamental: Quem é o responsável pelas características e pelo controle de qualidade de qualquer tipo de coisa é o consumidor. É a lei da oferta e da procura, sem malícia ou benevolência, estritamente direta e denotativa. Qualquer tipo de coisa pode germinar das mentes humanas, mas somos os culpados e os responsáveis pelo que é cultivado. Não acho que já vivamos num mundo sem censura. A internet foi idealizada para sobreviver a catástrofes, mas isso não quer dizer que uma ação deliberada a impeça de funcionar. O grande detalhe é que se ganha muito mais dinheiro com ela do que alguns estão perdendo por conta dela. A corda arrebenta do lado mais fraco, por isso as reações das empresas de comunicação e entretenimento não são contra ISPs, mas contra pequenos grupos que são múltiplas vezes mais fracos que eles. É um poder que é dado por cada consumidor e acumulado pelos produtores.

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