O cruzamento da Sunset Blvd a Vermont Ave, em Los Angeles, é pontuado por quarto prédios gigantescos. Três deles são complexos hospitalares renomados, verdadeiras cidades contidas em corredores infindáveis, habitadas por pacientes e funcionários. O quarto deles é um palácio tão formidável quando azul, que abre os braços para a rua e esconde o restante dos edifícios do complexo. No topo dessa construção cruz dourada e uma palavra em letras garrafais, igualmente douradas: Cientologia. Esse é o quartel-general, ou Pacific Command Area, da igreja fundada pelo autor de ficção científica L. Ron Hubbard e um dos maiores polarizadores culturais e religiosos não apenas em Hollywood, mas em três continentes, desde a década de 1950. A cientologia é o tema do documentário Going Clear: Scientology and the Prision of Belief, dirigido por Alex Gibney, produzido pela HBO e responsável por uma das maiores audiências já registradas pelo canal, afinal de contas, todo mundo quer saber por que Tom Cruise despirocou, o que diabos acontece lá dentro e como alguém consegue acreditar numa religião baseada em alienígenas, invenções retiradas das páginas das ficções pulp e que cobra pesadamente daqueles que querem fazer parte dela.
O documentário em si é revelador, bem organizado, repleto de informação jornalística e revelada por ex-membros da igreja e procura, claramente, informar sobre as práticas, crenças e origens da religião auto-proclamada. As entrevistas são pontuais, lúcidas e pessoais, aquele tipo de material difícil de ser questionado pela sinceridade em tela. Entretanto, um dos entrevistados falava com a mesma convicção à favor da Cientologia enquanto foi membro e porta-voz da entidade. Logo, há dois extremos em jogo. Durante o radicalismo e o depois.
O mais interessante, porém, são as discussões levantadas por Going Clear, tanto no livro de Lawrence Wright, vencedor do Pullitzer, quanto à natureza da fé, dos limites aceitos pelas pessoas e, claro, dos absurdos envolvido em qualquer culto ou grupo radical. Meu primeiro contato com o conceito da Dianética – nada mais que um blablabla de auto-ajuda criada por Hubbard para, assumidamente, ganhar dinheiro – foi uma reunião do Clube dos Leitores de Ficção Científica, em São Paulo. Uma pessoa, prima de um dos membros, começou a visitar as reuniões sob o pretexto de divulgar o livro “Dianética” e também “A Reconquista”, ambos escritos por L. Ron Hubbard [hoje considerados livros sagrados, logo, isentos de impostos nos Estados Unidos]. Ouvi alguns conceitos, mas nunca aceitei os convites de visitar o “centro de estudos de dianética”. Meses depois, a mesma pessoa entrou em contato oferecendo-se para participar dos encontros do Conselho Jedi São Paulo e fazer a mesma “divulgação científica”. Bem, fui pesquisar e o que encontrei foi uma religião por trás da auto-ajuda e, como o objetivo do fã-clube era divertir e reunir aficionados, não tentar moldar suas mentes, rejeitei o primeiro, o segundo e o terceiro convite.
Desde esse período, nos idos de 2000, perdi o contato com o assunto. Quando mudei para Los Angeles, notei um grupo curioso de cerca de 50 pessoas que esperava por um ônibus em frente à primeira escola da Ariel. Todos vestiam as mesmas roupas – trajes formais, em tons de cinza e azul – e esperavam por algo. Certo dia, esperei para ver o que acontecia. Um ônibus encostou e todos entraram. Ele era azul e tinha uma palavra escrita na lateral, em dourado e preto: Scientology. Moro bem ao lado do quartel-general, e a coisa de 15 quarteirões do Scientology Celebrity Center, e nunca me dei conta do tamanho do envolvimento das pessoas aqui. Na Hollywood Blvd, ao lado do teatro Pantages, existe um museu em homenagem a Hubbard, assim como outras iniciativas espalhadas pela cidade que levam o nome da religião. Enfim, eles estão por todos os lados. É o equivalente local à presença da Universal em São Paulo.
Tenho amigos envolvidos com o conceito de dianética por aqui. E fui convidado, claro. O apelo do sucesso profissional e do aprimoramento pessoal é atraente, assim como aqueles cursos de choque emocional oferecidos por gente como Lair Ribeiro e Yasushi Arita, no Brasil. Muito do contato inicial é oferecido a empreendedores, gente que quer ser melhor no que faz, ser “líder”, ou, especificamente no caso da cientologia, “se livrar da negatividade mental e ficar limpo”. O termo original é “clear”, ao qual o título do documentário se refere [Going Clear: Ficando Limpo]. Logo, por conta do networking oferecido pela igreja, da carga pesada de conceitos e mensagens incutidas nos praticantes e, também de sorte, todo e qualquer sucesso da pessoa passa a ser atribuído à Igreja da Cientologia e todas as falhas acontecem pelo indivíduo não ter se esforçado, treinado ou estar limpo o suficiente. Alias, esse preceito está presente em diversas linhas religiosas. É a terceirização do sucesso e a internalização do fracasso.
Hubbard era maluco, manipulador e, enquanto muita gente brinca “vou abrir uma igreja e ganhar dinheiro”, ele fez. A diferença é que, em vez de alugar um salão, vestir um terno e ficar gritando feito um maluco o mais alto que pode numa esquina qualquer até alguém resolver entrar, ele usou toda a prática que tinha como novelista de ficção científica e inventou o pacote completo: mito de criação, metodologia de aplicação, estrutura clerical, instrumentos, conceitos, objetivos e, inevitavelmente, punições. É como se J.R.R. Tolkien tivesse resolvido criar o “Eruismo” baseado no Silmarillion e em O Senhor dos Anéis. A diferença é que o Professor era, de fato, genial, fez sua parte na guerra e amava a esposa ao ponto de escrever Beren e Luthien; enquanto Hubbard só fez besteira na Marinha, mentiu a torto e à direita, batia e ameaçava matar a esposa, raptou a filha e a levou para Cuba, e se auto-denominou Comodoro de três navios tripulados por jovens deslumbrados, manipulados, explorados e parcamente remunerados.
Acreditando ou não, religião deve ser respeitada, todo mundo sabe disso. O calcanhar de Aquiles da Cientologia é justamente sua criação, seu objetivo e seu homem sagrado. Nenhum dos métodos de Hubbard jamais foram aceitos pela sociedade americana de psicologia; nenhum de seus dogmas é minimamente plausível; e seus ministros, assim como o atual líder supremo da batatinha – e melhor amigo de Tom Cruise – David Miscavige, parecem discípulos de Tim Tones com aqueles uniformes de marinheiros, discurso de guru de auto-ajuda, e a clara intenção de faturar. Os relatos sobre a “Guerra” contra a Receita Federal – que a Cientologia GANHOU! – é tão assustador quanto os depoimentos sobre pessoas presas, espancamentos e famílias inteiras serem destruídas por ordem da “igreja”. Como prêmio pela vitória, a Receita Federal declarou a Cientologia como Igreja, logo, protegida pela liberdade de religião na Constituição e isenta de impostos.
Mas parte disso pode ser dito sobre a maioria das religiões, não é mesmo? Em determinados pontos nas histórias milenares, cristianismo, islamismo, judaísmo e etc. mataram, exploraram, discriminaram, oprimiram e cometeram todos os pecados que sempre denigrem. A mensagem pode até ser divina, mas o homem é falho, entretanto, até que se prove o contrário, os deuses só existem, ou não, na cabeça de cada um de nós e o poder, e acesso a fortunas, está sempre a um passo de qualquer sacerdote.
Documentários tendem a ser unilaterais por várias razões. Nesse caso, Gibney faz questão de relacionar as pessoas que recusaram, ou nem responderam, aos pedidos de entrevista. E também pontua que Miscavige concentrou todo o poder e não fala com mais ninguém, assim como Hubbard depois que passou a ser investigado pelo governo e precisou viver os últimos anos de vida longe do mundo real. Entretanto, é muito difícil não acreditar nas palavras de Paul Haggis, um dos roteiristas mais eficazes, respeitados e relevantes de Hollywood. Haggis foi membro por quase trinta anos e “até aceitava a parada da auto-ajuda, da melhoria pessoal”, mas tomou um choque quando foi apresentado ao “material secreto”, escrito à mão por Hubbard, que revela o mito de criação, os alienígenas e as maluquices que já soavam cafonas nos anos 1950 e, hoje, bem, parecem apenas bobagem.
Esse é o “mito”:
Xenu (lê-se zinu), um tirano galáctico, começou a congelar pessoas num planeta superpopulado e, sendo transportadas por aviões espaciais [aviões mesmo, não naves], as jogou num planeta prisão, a Terra, dentro de vulcões, há 75 milhões de anos. Depois jogou bombas atômicas em cima deles. Logo, quando um bebê humano nasce, os espíritos – ou thetans – desses alienígenas entram em nossos corpos. Eventualmente, eles precisam ser expulsos e só a Cientologia pode fazer isso para você!
Qualquer rascunho num guardanapo feito por Neil Gaiman é mais original e crível que essa bobagem. Até a ressureição fica fácil de engolir depois de algo assim. Entretanto o membro da Cientologia só descobre isso depois de já ter gasto milhares de dólares, muitos anos, e boa parte da sanidade – em alguns casos – em vez de ser apresentado à “crença” logo de cara. Nesse ponto as religiões mainstream, pelo menos, são honestas. Mesmo o pastor mequetrefe que quer encher o bolso fala sobre Deus, salvação e fé. Existe uma mensagem unificada, que atende à demanda humana por compreensão, por lógica na existência e alivia o medo da morte, permitindo a vida menos atribulada. A Cientologia aposta no: “temos superpoderes! vamos salvar o mundo!” Isso me lembra muito o discurso de alguns evangélicos radicais cujas seitas alegam que só eles serão salvos no fim dos dias. É a conveniência acima da fé.
Falar de fé é complicado. Alguns não leem para não serem contrariados, outros simplesmente por não acharem nada de errado – Haggis mesmo confessa nunca ter lido nenhuma critica à Cientologia ao longo dos 30 anos de envolvimento e só percebeu o tamanho do problema quando suas duas filhas homossexuais foram mal tratadas – ou são radicais ao ponto de acharem que qualquer crítica, por menor que seja, é um ataque. Embora a inteligência seja nosso maior dom, o bom-senso é nossa maior arma. Apenas com a compreensão é possível encontrar formatos melhores ou corrigir erros.
É isso que Going Clear tenta mostrar. Das ameaças implícitas a John Travolta – que envolvem a criação de um arquivo negro com revelações feitas pelo ator em suas sessões de “audit”, que envolvem relatos pessoais a técnicos que anotam tudo que você fala; é como se cada confissão a um padre fosse devidamente anotada e catalogada –, à organização para o divórcio de Tom Cruise e Nicole Kidman e, o mais assustador, a destruição de famílias. Quando um membro sai, todos à sua volta são orientados a se “desconectarem” da pessoa. É algo similar à excomunhão católica, a diferença é que ninguém mais pode falar com você, pois você passa a ser uma “pessoa supressiva” [Nicole Kidman ganhou essa classificação!], alguém que faz mal, que o impede de ficar “limpo”. Ver uma avó e mãe chorando a perda da filha e da neta por ter sido desconectada é de partir o coração. Especialmente vindo de uma organização que se diz disposta a salvar o mundo.
É impossível não reavaliar o filme O Mestre, de Paul Thomas Anderson. Quando assisti pela primeira vez, vi sem o filtro da religião, sem críticas e procurando compreender a obra pelo que ela apresenta. Depois de ver Going Clear, tanto O Mestre quanto Os Picaretas e tantos outros filmes que tratam sobre sociedades secretas que envolvem controle mental, evolução da pessoa ou da alma, ou experiências em vidas passadas e envolvam artistas deslumbrados, não há como ignorar a fonte e suas consequências.
A influência é gigantesca e maior parte vem de medos ou notícias negativas. Ou de Tom Cruise pirando no sofá da Oprah. Ou dos tablóides aproveitando a onda e relatando como Katie Holmes foi aprovada pela Cientologia para se casar com Cruise; ou, pior, da namorada que eles arrumaram para ele, depois de uma longa seleção entre as seguidoras mais bonitas. As histórias de abuso – há muitas delas na internet, com relatos, sites, mas nem tanta coisa no YouTube, pois a seita se mostrou bastante eficaz em vetar material – e enriquecimento declarado deveriam ser o suficiente para manter todo mundo apreensivo com o assunto. PTA fez isso muito bem “O Mestre”, ao mostrar os transtornos e ilusões de Hubbard, em atuação fantástica de Philip Seymour Hoffman, enquanto Joaquin Phoenix é o sujeito iludido, desesperado, sem eira nem beira, que é violento e opressor quando necessário, em nome do seu mestre. É uma relação tão intensa que é como se todos os milhares de jovens recrutados para o trabalho semi-escravo da Sea Organization (o time de “elite” que começou a carreira limpando e restaurando os navios de Hubbard e, hoje, é enviado para uma prisão chamada “The Hole” para re-indoutrinação caso demonstrem dúvidas ou desejo de sair) estivessem reunidos na alma de Phoenix. Ele foi invadido por thetans!
Se o entretenimento reflete esses medos é por terem vulto e relevância. É impossível viver aqui sem esbarrar nos prédios, nos pôsteres que ainda vendem o livro “Dianética” ou mesmo em amigos que decidiram encontrar a solução para os problemas financeiros nesse “jeito fantástico de pensar e se aprimorar”. Existe uma Missão da Cientologia aqui do lado de casa, nem dois quarteirões, e, nas noites de reunião, sempre existem duas meninas bonitas, sorridentes e empolgadas na entrada do prédio lindo e recém-construído. Quando você passa por ali, elas entregam um folheto e dizem:
“Quer saber como melhorar a sua vida e parar de sofrer?”
A resposta mais óbvia para essa pergunta sempre parece ser, “Ganhe na Loteria!”, mas, estamos falando de uma doutrina criada por um sujeito que resolveu fazer a própria fortuna sem comprar um bilhete. O “segredo” eles não contam, afinal, leva um tempo para ficar limpo e poder entender a grande revelação.
Enquanto isso, o valor estimado de US$ 1.5 bilhões que a Cientologia tem em imóveis, doações, contas e outras fontes de renda, só aumenta.
Mas tudo vale a pena, afinal, precisamos fazer o possível para sermos pessoas melhores, expulsar as almas penadas alienígenas de nossos corpos e conviver apenas com gente tão bitolada quanto a gente. Paranóia, espancamentos, exploração, opressão, desligamento da sua família e perseguição são apenas efeitos colaterais normais e aceitáveis.
Going Clear está em cartaz na HBO. Veja o trailer:
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