Gravidade

O espaço é infinito, pode ser claustrofóbico, mas também é uma alegoria ao recomeço e à luta em “Gravidade”, novo clássico da ficção científica!

Soulsearching é um termo interessante, significa “buscar a razão de ser”. O ciclo é diferente para cada um e ele começa pelas razões mais distintas, alguns encontram a resposta, outros passam a vida deslocados, sem saber ao certo porque fazem o que fazem. Invariavelmente, todo ser humano passa por isso. Mesmo que de forma inconsciente ou disfarçada como algum momento de escolha, fim de relacionamento, novo emprego, de incerteza social e medo do futuro. Os casos mais extremos são provocados pela dor. Pela perda. E, não importa quantos amigos e familiares estejam por perto, a jornada é sempre solitária e só termina na hora certa, quando a pessoa chega à conclusão, seja ela positiva ou não. Essa é a trajetória de Gravidade (Gravity, 2013, EUA), dirigido por um mexicano, estrelado por norte-americanos salvos pela tecnologia chinesa e amarrado por um tema universal.

Cercado por polêmicas científicas, longo tempo de produção e muitas idas e vindas de elenco, “Gravidade” estreou com força e relevância, num momento social muito interessante para os Estados Unidos. Assim como “Guerra nas Estrelas”, que redescobriu o sonho de habitar as galáxias desperto pela Corrida Espacial, “Gravidade” promove um momento de catarse coletiva perante a crise sócio-política e, por que não, de identidade vivida pelo povo norte-americano. Desprovidos de uma meta clara e coletiva, há décadas, é necessário buscar essa razão de ser e, quem sabe, sair da fossa. As promessas meio cumpridas desde a eleição de Barack Obama, o distanciamento político entre Democratas e Republicanos, o aumento da riqueza do 1% da população que detém o poder e o capital do país inteiro e, simplesmente, a incerteza foram responsáveis pela catalisação do problema recentemente. Os americanos perderam algo. A personagem de Sandra Bullock perdeu algo. Ryan Stone está perdida no espaço, o cidadão está preso num sistema que não o beneficia. Há salvação?

Uma resposta possível, e bem clara, vem na visão de um contador de histórias mexicano, Alfonso Cuarón. Ele traz no currículo o irreparável “Filhos da Esperança”, o sensível “Grandes Esperanças” e, até mesmo um dos episódios mais impressionantes de Harry Potter, “O Prisioneiro de Azkaban”. Os personagens de Cuarón têm algo em comum: eles lutam! Alguns por fé, outros por não ter outra opção. Nenhum deles aceita um destino adverso. Assim como essa é uma das respostas, também é uma das leituras. Há adversidade na vida da personagem principal, uma médica que perdeu a filha. Algo imutável e irreversível. Ela escolhe o caminho da solidão e da insensibilidade constante, como alguém que não se importa em passar o resto da vida no modo automático. Tudo isso é muito maior que a situação norte-americana, afinal de contas, Hollywood pode ser reflexo das demandas sociais “locais”, mas Cuarón tem uma mentalidade internacional e ele fala com espectadores em todos os lugares. Como todo entendido da ficção científica, ele sabe que, no final, o que importa é a relação com o ser humano e a relevância da história.

O acidente catastrófico na órbita da Terra funciona de alerta para a mãe entristecida. A partir daquele momento, o cenário mudou e só há duas opções: fazer algo ou esperar para morrer. A alegoria é clara e, felizmente, para o bem dos espectadores, ela escolhe se mexer. No começo, guiada. Depois, por conta própria. “Gravidade” inteiro é um paralelo com esse redescobrimento pessoal, com o teste de limites, da força de vontade e de como podemos encarar a perda. E o recomeço.

Simplicidade

A porrada vem sem som no espaço (parece que nunca vamos deixar essa “fixação” de lado!), com uma trilha sonora impressionante e um elenco de apenas 7 pessoas. Apenas 4 delas aparecem, algumas já mortas. Cuarón aproveitou para ensinar uma lição aos diretores: é possível fazer um blockbuster com apenas 2 protagonistas sem cair na monotonia do diálogo exagerado. Em “Gravidade”, menos é mais! Tudo funcional por conta de um roteiro certeiro, escrito pelo próprio Cuarón, que utiliza todas as cenas com extrema eficácia narrativa, valorizando a atuação e dando a impressão de liberdade suprema. É a ação de Sandra Bullock que a leva do marasmo ao renascimento (na cena mais linda e simbólica do filme), sem grandes discursos verborrágicos ou constatações metafísicas. Tudo é imediato e direto. Ou segura o último pedaço de metal da estação espacial que se desfaz ou enfrenta a solidão do espaço até o oxigênio acabar.

O espaço pode ser infinito, mas é o opressor. Todo aquele vazio envolve a trama, que ganha contornos claustrofóbicos, afinal, a vida só existe dentro dos trajes e cada respirada pode ser a última. Cuarón foi hábil ao manter o espaço em silêncio, mas enchendo as caixas de som de vida quando a câmera cruzava o visor do capacete e entrava no close up do personagem. O espaço até poderia tentar quebrar o cerco e eliminar aquele pequeno casulo renegado, entretanto onde havia vida, havia esperança. E é praticamente impossível não entrar na trama. Pela luta da mocinha.

E pelo sorriso conquistador do herói. George Clooney é simplesmente fantástico como Matt Kowalski, o mais próximo de Buzz Lightyear que o cinema já mostrou! No controle, divertido e certeiro, ele carrega a primeira tanto Ryan quanto a primeira parte do filme sem esforço, mesmo perante a tragédia iminente. Ele é o mestre, o Obi-Wan Kenobi da Dra. Ryan. Ele é o cara que tem as respostas, o sujeito que já encerrou seu ciclo de soulsearching e está apenas aproveitando a vida com um sorriso no rosto.

Bullock e Clooney são as atrações do filme. Eles valorizaram demais o visual fantástico, as imagens da Terra, as destruições em massa e todo o drama contido no roteiro. Por isso “Gravidade” foi recebido com críticas bombásticas e criou algo que há muito não se via nos Estados Unidos: uma discussão nacional sobre cinema. Claro, muito por conta dos “erros científicos” (a distância entre as estações espaciais sendo a maior delas), mas a mensagem permeou toda a conversa e o público encontrou algo que precisava ouvir, ver e sentir. O filme também abriu a temporada de candidatos às principais premiações do ano que vem. E, se levar, vai ser por mérito e por ter entrado para a história da Ficção Científica sem forçar a barra. Cuarón substituiu a contemplação de Kubrick pela emoção pura e uma jornada mais próxima do espectador. Talvez, por isso, para muitos, “Gravidade” passe a ocupar o lugar de Melhor Filme Espacial já feito.

Os elementos estão lá. Basta encontrar o espectador certo, a magia acontece e a busca termina. Decifrar as respostas e dar o primeiro passo da nova vida fica a critério de quem chegou ao fim da jornada sem precisar escapar do frio do espaço onde ninguém ouve seus gritos. Nem vê suas lágrimas.

[box type=”shadow”]Fábio M. Barreto é jornalista, cineasta e autor da ficção brasileira “Filhos do Fim do Mundo“, publicada em 2013 pela editora Fantasy/Casa da Palavra, integrante do Grupo LeYa. Publicou o conto “Ela“, na coletânea Imaginários 4, da Ed. Draco. Mora em Los Angeles e está escrevendo seu segundo romance, Snowglobe.[/box]

5 comentários em “Gravidade”

  1. Brilhante a sua análise do filme, assim como brilhante foi o mesmo. Gravidade foi um chamado para todos nós que às vezes precisamos passar por esse processo de autoconhecimento.

  2. Em tempo, estou entorpecido a ANOS, acho que posso usar esse filme como uma catarse, o primeiro passo, o de saber que não estou bem, eu já dei, ao menos.

  3. Fábio, li algo sobre essa polêmica e acho que por ser tão realista, as pessoas esperam um documentário ao invés de um filme, que, para mim, é pura poesia e tem uma das cenas mais lindas que já vi no cinema, a última, em que Sandra se apresenta como uma gigante ao conseguir se levantar na terra.

    Para mim, é Oscar para ela. E Oscar de melhor filme. A trilha é linda, as imagens são sensacionais, o roteiro é ótimo.

    Parabéns pelo post.
    []s

Comentários encerrados.

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