House: Auto-Ajuda do século XXI

Hugh Laurie, David Shore e Robert Sean Leonard analisam a melhor série dramática da atualidade. Saiba como foi o tapete vermelho, ou melhor, azul, da sexta-temporada em matéria exclusiva! Entrevistas e mais entrevistas! Com os cumprimentos da Sci-Fi News, que liberou a publicação!

Por Fábio M. Barreto,
De Los Angeles

House é um dos poucos homens sem medo na TV mundial. Destemido, despreocupado e totalmente convencido de seus ideais, o personagem de Hugh Laurie revitalizou os roteiros televisivos com esse médico especializado em diagnósticos incapaz de jogar conversa fora ou usar meias verdades. Com House é tudo preto e branco, sim ou não, verdade ou enganação. Entretanto, nem mesmo ele resistiu ao resto do mundo politizado e, no final da quinta temporada, perdeu a batalha para sua própria convicção, fixação e, finalmente, alucinação. A guerra desse exército de um homem só recomeça num brilhante show de Hugh Laurie, em Broken, episódio de duas horas de duração – um filme do melhor calibre. E a corrida para os Emmy 2010 termina antes mesmo de começar. É barbada!

VEJA A COBERTURA FOTOGRÁFICA!

“É o House, meu deus!”, gritou um motorista alucinado na Sunset Blvd, em frente ao ArcLight Cinerama Dome, um dos cinemas mais tradicionais de Los Angeles. Sci-Fi News entrevistava Hugh Laurie naquele momento, em cobertura exclusiva da estréia da sexta temporada da série. “O pessoal exagera às vezes”, comentou o simpático Laurie, ainda espantado com as reações de seus fãs. O motorista em questão quebrou várias leis de transito ao sacar sua câmera portátil, parar o carro no meio da rua, e, antes de bloquear a faixa de pedestres, começar a filmar o “tapete azul” armado no local. A maior surpresa, porém, estava no fato de tamanho evento – com cobertura internacional – acontecer por conta do sexto ano da série. “Thirteen, eu te amo!”, outro grito provocou gargalhadas nos presentes. Grandes lançamentos [a estréia do novo 91210, do CW, por exemplo] ou retomadas relevantes [a segunda temporada de Heroes] recebem tal tratamento, mas nunca um programa já tão consagrado, premiado e devidamente divulgado.

A grande expectativa em torno da retomada de House e um patrocínio considerável da montadora Ford foram os elementos que colocaram esse evento em andamento, mas tudo por uma boa causa graças a uma generosa contribuição dos envolvidos para uma entidade dedicada ao tratamento de mazelas mentais. A experiência de House no hospital psiquiátrico é marcante, mas facilitada pela ótima estrutura. Muito diferente da vida de cão retratada por Rodrigo Santoro em Bicho de Sete Cabeças. É a eterna magia da qualidade médica norte-americana na TV, cuja natureza preparada e efetiva se imortalizou com Plantão Médico, mas anos-luz de distância da realidade das emergências mais pobres e, claro, de outros países. Claro que isso não é problema da série e nem de Hugh Laurie, que vive a essência de Hollywood ao entregar um cheque milionário, enquanto é ovacionado e calma frisson pelo simples fato de entrar no ambiente.

Provas de popularidade não faltavam: três mil convidados, mais de cem jornalistas, outdoors pela cidade e muito trabalho para os seguranças, dando duro para manter os curiosos – a pé ou motorizados – longe do evento. “Fico chocado com isso, seis anos depois e cada nova temporada parece algo de outro mundo”, assume Laurie, indicado quatro vezes ao Emmy [sem vencer] e outras quatro ao Globo de Ouro [faturou dois prêmios] na categoria Melhor Ator em Série Dramática. Mesmo recolhido, nada deslumbrante como Olivia Wilde ou falastrão como criador David Shore, Laurie vê seu trabalho com reservas e, claro, bom-humor: “Não acho seguro falar em Emmy agora, mas criar esse episódio, que tem duas horas com intervalos, mas só uns 9 minutos sem cortes [risos] foi algo marcante”. Especialmente por contar com a presença do ator em todas as cenas e também sem a presença de nenhum dos médicos membros de sua equipe.

Hugh Laurie ficou surpreso. “Pensei que os outros [atores] fossem me espancar ou me trancar num quarto escuro sem comida por alguns meses”, brinca o ator, sobre o momento em que recebeu o roteiro e se viu distanciado de seus funcionários. “Foi um exercício interessante para ver até onde eu conseguiria explorar aquela situação. Não foi fácil para House e nem para mim, especialmente por saber que se não acertasse no tom da atuação, teríamos problemas sérios; elenco, cenário e estrutura novos e nada típico em termos de House, então havia muito risco envolvido”.

Mais complicado ainda é manter um personagem tão odiável, mas adorado, no ar sem ultrapassar as barreiras do aceitável. “O conceito inicial apontava para essa personalidade controversa”, comenta David Shore, cuja primeira opção foi mesmo a Fox [no Brasil, House é exibido pelo Universal Channel e também pela Rede Record], mesmo com um programa cheio de potencial para canais com mais liberdade como HBO ou Showtime. “Ele poderia ser sincero sobre o que comeu no café da manhã, por exemplo, e soltar o verbo. Entretanto, é mais fácil aceitar esse sujeito na televisão, sabendo que ele não existe, pois a vida real seria muito mais árdua e cheia de agressividade.”

O formato não é exclusivo para o Dr. House, que influenciou [Sheldon Cooper, de The Big Bang Theory] e foi influenciado [Stewie, o bebê megalomaníaco de Family Guy]. Recentemente, Hollywood apostou num desbocado Gerard Butler, em A Verdade Nua e Crua, falando poucas e boas sobre relacionamentos e os exemplos não param. Além disso, o constante sucesso de House em diversos países coloca a honestidade em alta. “Esse jeito de ser é fundamental numa situação de vida e morte”, comenta Hugh Laurie. Ouvido sem auxílio de imagens, seu sotaque britânico o distância totalmente da persona de House, assim como seu modo de agir ou conversar. É a essência do grande ator, simplesmente absorvido por seu personagem e não o contrário. “Não deve ser muito legal se casar com alguém assim [risos], mas ouvir, e saber dizer, a verdade é necessário. Seu talento e postura direta faz com que as pessoas tolerem o jeito incomum, por assim dizer, aquele jeito de ser.”

Na vida real, franqueza e falta de habilidade política são recompensadas com exclusão ou abandono. Na TV, o resultado pode ser a internação hospital psiquiátrico e também o afastamento dos amigos. Não necessariamente nessa ordem. “Fiquei maluco para saber como começaríamos a sexta-temporada, pois a situação era maluca demais, mesmo para House”, lembra Laurie. “Essa série permite muita inventividade, seja trancar o protagonista num asilo, seja acreditar num longa-metragem no sexto-ano”.

A falta de objetivo social surge como elemento curioso na persona de Greg House. “Ele não quer cair nas graças de ninguém, nem ser popular e nem mesmo receber elogios”, explica Shore, altamente reverenciado por Laurie. “Claro que ele faz tudo de caso pensado, mas nunca almeja nada fútil ou aparente. Gosto de House por ele saber diferenciar certo de errado, e, literalmente, vive com base nessas duas realidades e persegue o que acredita estar certo. Há algo atraente nesse modo de encarar a vida, mesmo ele estando errado algumas vezes”.

“Não tenho dúvidas de que falar a verdade e viver sem rodeios sejam elementos fundamentais no sucesso de House, mas também existem muitos segredos escondidos ali”, analisa Laurie. “Logo, a existência de alguém capaz de expressar suas experiências de forma natural e transmitir essas verdades de forma indefensável, seja de modo engraçado ou cruel, transforma uma situação potencialmente agressiva em algo empolgante e viciante”. Ou, no caso do personagem, enlouquecedor.

Essa atração pode ser explicada como válvula de escapismo social. House acerta em cheio o público da classe média, normalmente acostumado com os dramas médicos do estilo de Plantão Médico. No Brasil, é a opção de qualidade para substituir as formas batidas e previsíveis das novelas globais. “Se comportar, pensar muito antes de falar e, agora com a internet, tomar cuidado com cada palavra se une à necessidade de engolir sapos durante o trabalho e temos um bando de gente louca para dizer umas verdades por aí”, contextualiza Robert Sean Leonard, que interpreta do Dr. Wilson, em House. “Como ninguém quer falar e perder o emprego, ou o amigo, as pessoas se contentam em ver um sujeito com carta branca para fazer tudo isso”. O personagem de Leonard é um dos poucos que mantém uma relação saudável com House, pois, em meio aos trotes e constantes conflitos, sua amizade serve como apoio bilateral ao longo das temporadas, tanto é que Wilson é o único personagem fixo presente no episódio especial.

“Não é qualquer amizade que resiste a tantos altos e baixos, talvez por isso House e Wilson funcionem bem juntos”, analisa Leonard, inesquecível em A Sociedade dos Poetas Mortos. Ajuda o fato de Wilson não fazer parte da cadeia hierárquica de House – sua agressividade afeta tanto funcionários, quanto a chefia – em sua busca desenfreada pela solução dos quebra-cabeças. “House tenta derrotar monstros imbatíveis o tempo todo, quer ganhar uma guerra impossível e desconsidera obstáculos, ou emoções alheias, em suas jornadas obstinadas”, acrescenta Laurie. É justamente essa guerra constante para encontrar um equilíbrio único, totalmente diferente do normal, a fonte das inesgotáveis piadas e chacoalhadas do personagem. “Difícil acreditar num recuperação completa, afinal, ele seria apenas mais um médico sem seu jeito de ser”, acredita Laurie.

Mediocridade não combina com Greg House, do mesmo modo que covardia não se aplica a Han Solo e sedentarismo está fora do vocabulário de John Keating. Daí sua ascensão como herói moderno, o vingador dos oprimidos. Assim como toda boa obra ficcional, House reflete um desejo latente de se recuperar a espontaneidade e sinceridade social, fato que só piorou com o aumento exponencial da importância da internet e das mídias sociais. Todos vêem e são vistos, participando do maior concurso de popularidade da história da Humanidade, mas poucos arriscam quebrar as regras ou impor suas próprias leis. House faz isso por eles , mas seu custos. Afinal, como todo sonho idílico da internet, House também pode ser assistido gratuitamente e os episódios estão sempre a um download de distância. O desejo de ser House existe, a predisposição de assumir suas opiniões e posturas não. É o culto nas sombras, sem dúvidas, idolatrar algo do qual nunca serão capazes.

O mais surpreso com tamanha identificação mundial foi David Shore. “Pensei que só eu tinha esse ponto de vista, dessa necessidade de ser sincero, mas quando descobri que mais gente gostava da idéia, fiquei sem reação”. Shore ofereceu o programa para a Fox descrevendo apenas o intelecto e modo de agir de House. Naquele momento, não havia organização de personagens de apoio, história a longo prazo e etc., havia um homem sarcástico, direto e médico genial. “Mas nada podia me preparar para os resultados de audiência, aquilo foi mais surpreendente que qualquer outra coisa”. Em média, House tem cerca de 14 milhões de espectadores nos Estados Unidos. O episódio mais assistido foi Frozen, da quarta temporada, com 29 milhões de televisores sintonizados.

*Matéria originalmente publicada na capa da Sci-Fi News. Entende quando eu digo que o material melhorou por lá? 🙂

4 comentários em “House: Auto-Ajuda do século XXI”

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