Diferente do jornalismo cotidiano ou da cobertura econômica e política, os cadernos (e agora sites) de entretenimento funcionam de forma diferente, especialmente quando se fala em cinema. Enquanto nos primeiros as informações não disponibilizadas podem ser reunidas por um jornalista investigativo, no caso do cinema isso não acontece por dois motivos: primeiro, tratam-se de empresas privadas, que possuem o direito de tomar suas decisões a portas fechadas; e segundo, o próprio teor deste meio não admite práticas deste tipo.
Tentar se infiltrar num set seria perigoso e, no mínimo, vergonhoso perante toda segurança dos estúdios. São empresas privadas, logo fazem o que bem entendem lá dentro. Portanto, há um acordo silencioso pelo qual estúdios permitem o acesso dos jornalistas a suas entranhas cinematográficas em troca de divulgação dos produtos [filmes, séries, DVDs, BluRays]. Normalmente, ninguém é obrigado a falar bem e, até certo ponto, contanto que a vida pessoal do entrevistado não seja colocada em debate, se tem muita liberdade para perguntar o que for necessário para a pauta. Entretanto como muitos departamentos de comunicação estão subordinados (ou fazem parte do departamento) a um gerente de marketing – não um jornalista ou relações públicas –, tudo tem que servir a uma estratégia e ai de quem não obedecer às diretrizes e obrigatoriedades impostas pelo estúdio, fica de fora. Ou seja, a cobertura não é feita pela necessidade ou relevância do assunto, mas sim, para cumprir as metas e ter uma função puramente comercial. Logo, pergunto: isso é jornalismo?
Importante é o nome do filme
A resposta imediata é ‘não’. Afinal de contas, se sujeitar ao planejamento de uma companhia que, descaradamente, usa seu veículo como ferramenta para aumentar seu resultado de bilheteria é algo despropositado. Claro que os veículos também fazem dinheiro dependendo do tipo de conteúdo e de sua relevância, mas, no meio disso tudo, está o jornalista. E nem falo do profissional utópico, que sonha com grandes reportagens ou em ganhar o prêmio Pulitzer, mas do sujeito que passa a semana entrevistando meio mundo, analisa filmes e dedica boa parte do seu tempo, acima de tudo, a abastecer a opinião pública com informações sobre o entretenimento. Esse é o modus operandi de Hollywood e o Brasil, claro, se submete aos comandos da matriz. Como se comportar? Como lutar por esse acesso quando não se tem um veículo de alcance nacional, um blog gigante ou milhões de views num canal de YouTube?
Tomemos esse exemplo para ilustrar o conceito:
‘Estúdio Tabajara vai lançar um filme sobre a vida de seu fundador, Tibúrcio Tabajara. A imprensa é cautelosamente selecionada e aprovada para participar do lançamento. Quem é aprovado, tem acesso a quase tudo; quem não é, não pode, sequer, assistir ao filme. O Estúdio Tabajara informa que há embargo nas matérias,; elas só podem ser publicadas no mês de lançamento: no caso de revistas, ela só pode chegar às bancas três semanas antes da estréia; de jornais, só dois dias antes. Por diversas vezes, mesmo previamente aprovados, os jornalistas precisam assinar um documento concordando com o embargo para poder realizar as entrevistas, ou então são barrados na porta. Entrevistas feitas, é vez dos escritórios locais entrarem em ação. Se, digamos, a Entrevistando, respeitosa revista que há anos segue o trabalho do ilustre sr. Tibúrcio, resolveu não publicar a matéria por não ter gostado do filme e não desejar que mais ninguém tenha contato com aquela imagem distorcida do homem que tanto idolatram, o stress é inevitável. Porém, se utiliza apenas, digamos, duas frases geradas por conta de um dia inteiro de bate-papo, o objetivo do lançamento foi atingido: os célebres leitores da Entrevistando leram o nome do filme e, certamente, vão correr para os cinemas.’
O nome do periódico na lista
A função das assessorias de imprensa, por muito tempo, foi maximizar a exposição de seus clientes e produtos. Logo, quanto mais, melhor. Se uma entrevista se transformar em cinco grandes matérias, seria o mesmo que matar toda a família de coelhos com uma paulada só. Bom, assim diz a lógica e a linha de raciocínio que vê o jornalismo como algo dinâmico, atualizável e útil. Pensemos: o filme do sr. Tabajara não agradou ao editor da revista, mas seus comentários sobre golfe, feitos durante a entrevista de divulgação do filme, seriam um prato cheio para a outra revista da editora, a Buraco 18.
Entretanto, a distribuidora do filme não ‘aprovou’ a Buraco 18. E é nessa prática quase fascista que reside todo o problema nessa relação secular entre estúdio e imprensa. Liberdade de informação nunca é respeitada nessa equação e todos sabem. O estúdio investe no evento em si e, por conta de permutas com companhias aéreas, ou descontos especiais nos hotéis, acaba vendo pouco do seu orçamento de comunicação sendo utilizado, especialmente se comparado ao resultado primário que obtém [as matérias nos veículos que aceitaram o convite para viajar]. É uma realidade numérica. Número de leitores, transformado em valor monetário, contra o custo. Ninguém joga dinheiro fora. E nem deveria.
Mas aí entra o elemento do freelancer e do correspondentes locais. Cada vez menos, os veículos têm menos condição de bancar correspondentes contratados e a saída é contratar quem está baseado por conta própria nos locais. São apenas seis brasileiros em Los Angeles. No dia do evento, pouco importa se você é enviado ou local, o que vale é o nome do periódico que está na lista, o veículo que o estúdio quer ver divulgando seu filme. São muitas entrevistas, como Jason Reitman critica no vídeo abaixo, e todo mundo sabe que 80% delas nunca serão utilizadas, ou apenas uma declaração chegará ao consumidor final, mas o sistema acontece mesmo assim, cansando atores, gastando tempo sem, necessariamente, ampliar a penetração do material em questão. Num exemplo simplório: é como se plantássemos toda uma safra de arroz, mas só consumíssemos o melhor da colheita, jogando o resto no lixo (uma gaveta escondida ou um arquivo de áudio entregue ao esquecimento).
Flexibilidade
Além de tudo isso, cada estúdio faz as ‘entrevistas genéricas’, normalmente conduzidas por um jornalista contratado, cheio de perguntas genéricas e positivas para transformar até mesmo filmes como Dragonball Evolution na maior aventura de todos os tempos. Quando, digamos, uma revista de menor poder de fogo – ou seja, não aprovada pelo estúdio – pede uma entrevista por telefone ou se interessa pelo filme, é, no máximo, isso que recebe. Um arquivo de Word cheio de puxa-saquismo. Tem gente que se vira com isso e, recentemente, o principal veículo para quem escrevia fez isso. Bati e briguei até dizer chega. Se o estúdio ‘não aprovou’, é porque não se importa com nossa divulgação. E se não se importa, para que dedicar espaço a eles? Vejo assim, é um trabalho em conjunto. Quem não ajuda, não merece ajuda.
Uma das saídas desses veículos secundários, mas relevantes [caso contrário não estariam em funcionamento, concordam?] é contratar freelancers e comprar material já produzido. Como, em nosso exemplo, a entrevista com o sr. Tabajara. Pela lógica, se a Entrevistando já publicou, mas só duas linhas, seria benéfico para o estúdio ver uma entrevista completa saindo na Buraco 18; uma pauta sobre o estilo visual do sr. Tabajara na Gastando Muito e uma participação dele, comentando as dificuldades de ser um fã de heavy metal morando em Salvador no meio do Carnaval, num especial sobre música na Roqueiros. Tudo isso, gerado num mesmo dia, numa mesma entrevista. Pela lógica, isso seria bom.
Mas não é a lógica que rege os estúdios. Jornalisticamente falando, a partir do momento em que a entrevista foi feita, ela não pertence ao estúdio. Mas também não pertence ao jornalista. Seu conteúdo pertence a quem se interessa por ele – no caso, os leitores de cada uma dessas publicações. Em muitos casos, um entrevistado não colabora para uma pauta, mas se mostra genial para ajudar em outro aspecto do cinema. Aconteceu isso quando entrevistei Michael Bay. Falamos sobre o Pirate Bay e ele fechou o tempo, mas aproveitou o embalo para sair da minha pauta e falar sobre segurança de roteiros e de outros assuntos que, com certeza, serão aproveitados em outro lugar, que não o veículo ‘pré-aprovado’.
Uma gota de idealismo
A resposta das assessorias é pesada. Listas negras, e-mails imperativos, pedidos de satisfação, lembretes de que as regras devem ser seguidas, aparece de tudo quando isso acontece. Já cheguei a ouvir que ‘só poderia publicar em outro lugar, depois que meu concorrente tivesse publicado’. Noutra vez, tentei pedir liberação. Três meses depois que o filme havia estreado, e eu perdido o frila, chegou a ‘negativa’ para o pedido. Fascista pode parecer forte, mas é o termo mais adequado aqui. Os estúdios querem controlar quem fala sobre seus filmes e, em muitas vezes, por acordos comerciais, também dizem o que deve ser dito. Não adianta fazer de conta que isso não existe. Existe, sim. Aliás, uma vez tive que fazer isso quando era estagiário no Estadão e, como não me toquei, o editor precisou me chamar no canto e explicar que seria ‘extremamente importante não criticar a churrascaria’ por conta das relações do jornal com tal estabelecimento.
Como confiar num estilo de cobertura que só trabalha até onde o estúdio permite e quer? Como tentar entender que o cinema ainda seja espaço para reflexão e mudança, e não apenas entretenimento barato, baseado nessa estranha relação entre estúdio [que controla] e imprensa [que acata]? O terreno é delicado e, provavelmente por isso, ninguém tenha peito para trazer esse assunto à baila. Celso Sabadin que o diga. Quando criticou as distribuidoras, sofreu pesado nos bastidores. O mesmo valeu para mim, quando sofri a campanha difamatória infundada na década passada e sou ignorado até hoje por três estúdios. É preciso disposição para luta contra a falsidade e a acomodação latente ao jornalismo de entretenimento atual.
Hoje entendo perfeitamente o que fazia dezenas de colegas serem meus ‘melhores amigos’ quando era assessor da Turner Broadcasting System [Cartoon Network, CNN, TNT etc.] e também na PlayArte e, depois que me desliguei das empresas, nem me cumprimentarem em exibições de filmes. Ou da assessoria da Walt Disney que, enquanto eu era repórter do Estadão, atendia ligações, pedia entrevistas, enfim, trabalhava comigo. No dia seguinte, esqueceram quem eu era. Mas foi uma lição, pois, na verdade, o que interessa é onde você está, não quem você é. É uma relação de poder. Quando você o perde, torna-se irrelevante. Dá nojo saber que esse é o modo como as coisas funcional. Se há uma coisa idealista que nunca deveria de sumir do jornalismo, é o fato de a qualidade e a ética sempre superarem os interesses. Mas se o próprio jornalismo morreu e se transformou no monstro que vemos hoje, como esperar que seus ideias sobrevivam? Os blogs não levaram isso consigo, alias, muitos tem PhD em bajulação, política e integram a tropa de choque dos estúdios.
O caminho do ‘jornalismo de elevador’
Todo esse cenário assusta e faz pensar. Qual a real função do jornalismo de entretenimento? Depender exclusivamente de tradução do material produzido pelos inúmeros websites norte-americanos, que têm vasto acesso a todo esse material que é filtrado ao extremo no Brasil? Diferente da imprensa internacional, os veículos domésticos (como são chamados) cobrem o entretenimento com mais liberdade e em grande número, numa proporção de 9:1 em comparação com os estrangeiros.
A crise não é gratuita. Se o jornalismo impresso tem sofrido com a falta de anunciantes e com a flexibilidade da internet, é por conta de sua dificuldade de adaptação. Porém, os mecanismos que regem o formato atual devem mudar com ele para, simultaneamente, uma nova mecânica surgir. Se os próprios jornalistas respondessem a práticas como essa dos estúdios de forma pontual e aberta, poderíamos contemplar um cenário com boas expectativas para a eventual reconquista do espaço. Entretanto, o simples fato de este texto só poder ser publicado na internet, por conta de seu tamanho e conteúdo crítico, pois não seria apoiado diretamente por nenhum veículo impresso – o real alvo dessa missiva – mostra que o problema é sério, esbarra na falácia política e está muito longe de ser resolvido. Enquanto isso, estúdios podem, livremente, eleger quem pode, ou não, falar sobre seus filmes.
E, cada vez mais, seguimos o caminho do ‘jornalismo de elevador’: rápido, descartável e irrelevante.
A liberdade não está morta, mas sua interdição foi decretada faz tempo. Isso me faz lembrar das aulas de análise de discurso e do conceito “Liberdade Interditada / Paraíso Proibido”, então, deixo uma imagem similar:
Artigo originalmente publicado no Observatório da Imprensa, em 2009.