“O difícil não é aceitar a inevitabilidade da morte, mas viver com a certeza do fim da consciência”.
Quando o homem não compreendeu a morte, nasceu o misticismo. Quando, mesmo assim, não aceitou seu destino, surgiu a fé. E ela é poderosa e criativa. O pós-morte egípcio ou o paraíso cristão são bons exemplos. Deuses e deusas são subproduto dessa necessidade, ou melhor, negação inerente a uma raça carente por realizações, sedenta pela imortalidade e fadada ao fracasso. Pelo menos com base na mentalidade individualista. A raça pode fruir, mas nada muda o papel estanque do indivíduo. Alguns entram para a História, outros alteram rumos de forma inimaginável, mas o que resta são idéias, simulacros, fragmentos de indivíduos mortos. Sabemos bem como manter e, mesmo que inconscientemente, honrar esses ilustres antepassados ao relembrar suas contribuições e heroicizar seus atos, mas para eles, invariavelmente, pouco importa. Excluindo a fé e o misticismo, resta um fato concreto: o fim da existência individual.
Certa vez acordei desesperado. Nada de suadouro ou olhos arregalados, aquela sentada apavorada como Hollywood gosta de mostrar. Apenas acordei e minha mente estava perturbada. Um dos mestres com quem cruzei nesse longo caminho ensinou algo inusitado e brutal, mas deveras interessante: como é a sensação de morrer. Um exercício, um conceito aplicado para maximizar seu efeito positivo, o de sair do transe e valorizar cada segundo da vida. Interessante e atraente, mas há riscos. Especialmente quando sua mente decide trilhar esse percurso de forma inesperada, solitária e muito mais profunda que o exercício motivacional.
Como disse, acordei desesperado. Nenhuma imagem pavorosa ou catástrofe havia acontecido no sonho. Era um sonho. Sim, um sonho. Levou algum tempo para essa conclusão convencer minha mente. Tudo era possível, desde o devaneio oriundo da paixão pela ficção científica – qual das duas sensações é a real e qual é o lampejo agonizante? – ou mesmo idéias paranóicas de uma mente criativa ou simplesmente confusa. Sonho real demais. Especialmente por sua natureza.
Não havia medo ou mesmo pavor pela tragédia anunciada. O fato se fazia desnecessário, ou até existiu, mas perdeu relevância por conta do desdobramento. Se a consciência se encerra abruptamente no momento da morte, com ela se vão as sensações – boas ou ruins. Tudo se conclui. Mas esse não era o caso. A tortura começou quando duas consciências se chocaram: uma viva e temerária, outra vazia e finda. Como explicar ao cérebro, durante o processo, de que se tratava de uma projeção do desconhecido? Não há leis ou convenções quando a mente trabalha sozinha, sem barreiras, sem a sociedade, sem medo.
Talvez por isso se valorize tanto a interpretação de sonhos. Algo habitualmente cômodo, aliás, e também parte da equação inicial criada para dar valor ou razão à existência. Exemplificando de modo resumido e sem diminuir seu método ou seus estudiosos, “Se sonhei com morte e minha vida mudou, significa que a relação é viável; ou se sonhei com dente e alguém morreu, logo, meu inconsciente sabia”. Uma coisa é certa: cada vez menos permitimos que nossa verdadeira essência se apresente em público. É a repressão cada vez mais ostensiva na sociedade autodenominada democrática, livre e intelectualizada. Repressão da real índole. Um ser desconhecido em sua essência exercitando o constante cerceamento de sua composição genética e mental em prol do monstro social, que se alimenta desse conflito e retribui com sucesso o mais hábil não na liberdade, mas sim na manutenção da falsidade.
Entre ignorar suas mensagens – válidas ou não – e viver metodicamente pautado pelas mensagens inconscientes [cá entre nós, poderia ser pior, poderia acreditar no horóscopo do jornal], um meio termo é escolha interessante. Não nesse caso. Não tive opção. Quero esquecer, mas minha mente foi irredutível.
Experimentei o nada. A ausência do existir. Desprovido da limitação física ou da atividade sensorial. Uma única ligação da consciência observadora [nome dado ao ‘eu’ observador, que transmitiu a experiência] e a consciência finita [grupo de elementos que, mesmo inexistentes, procuraram a consciência observadora]. Nesse caso, inexistente é diferente de inexpressivo, pois a contemplação da inexistência causou impacto inegável e, pelo jeito, indelével na consciência observadora, logo a inexistência ganhou conotação ativa e foi relevante e expressiva.
Curiosamente, a consciência observadora fez as vezes de filtro nesse acontecimento. Ela traduzia as sensações provocadas pela consciência finita. Ou seja, um eu vivo olhava, sentia e reagia a um eu morto. Como se um jovem de 20 anos viajasse no tempo para o instante seguinte à sua morte, mas não encontrasse um corpo, mas sim o efeito mental do fim da atividade física e sentisse tudo aquilo. É a maior de todas as contradições. Duas naturezas opostas convivendo num mesmo momento numa mesma mente. Choque seria o termo inicial, mas prefiro pensar no evento como dois imãs se repelindo. Matéria e anti-matéria
A consciência observadora [ligada ao corpo] tentava gerar reações para contrapor e eliminar o pânico causado pelo que experimentava, porém, o estado de torpor serviu como clausura e catalisador para o evento. Racionalizar ajuda a compreender, mas a sensação foi a seguinte: o desespero tentou fazer o corpo se mover, mas tudo aconteceu nos limites ilimitados do sonho e naquela relação definiu-se que a consciência finita era a dominante. Em outras palavras, sonhei que morri e minha mente estava bastante convencida disso, tanto que não conseguiu puxar a tomada e fugir dali.
Não consigo me lembrar de ter ido dormir hoje de tarde, mas nunca vou me esquecer do momento em que acordei. Ou melhor, de quando consegui acordar depois de uma longa luta consciente para me desligar da pior sensação que senti até hoje. Se foi um duelo de vontades, a consciência observadora perdeu a briga instantaneamente. Se foi uma mensagem, não poderia ter sido enviada de forma pior e aterrorizante. Se é apenas a manifestação de um medo, como não temê-lo mais ainda? E pela segunda vez. Na primeira ocasião, relativamente marcante, tudo não passou de um RPG objetivo. Hoje não havia método nem guia. Apenas o desespero, a agonia e a vontade horripilante de deixar aquele lugar, aquele vazio, aquela constatação de que se tudo falhar, todos os sonhos não realizados ou realizações históricas simplesmente desaparecem num piscar de olhos.
Viver intensamente cada segundo nunca fez tanto sentido. E como é fácil acreditar num final feliz espiritualizado e cheio de propósito. A fé no divino suprimi esse conflito, muda a dinâmica e estabelece uma relação pacífica entre o Existente e o Inexistente, mas também blinda a emoção bruta. Para muitos a transferência da enganação social e da valorização pela boa vizinhança promove o balanço necessário para seguir em frente, para alguns questionar tudo e todos faz a diferença, mas para outros não há rodeios e a morte, literalmente, bate à porta. E ela não traz um tabuleiro de xadrez debaixo do braço.
por Fábio M. Barreto, de Los Angeles
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Aproveitando o assunto, duas versões de uma clássica do folk/country americano.
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Depois de ler, reler e ficar uns 10 minutos, sentado, pensando em tudo que li neste texto, hora de escrever alguma coisa.
Ao nascer, uma coisa é certa: iremos morrer.
E para “desenquadrados socialmente” como eu, a morte encerra a existência da vida no humano.
Mas há algo fantástico nisto (por incrível que pareça): tudo que o ser fez e produziu, durante a vida, permanece. (ou quase tudo!)
Se escreveu um livro, ele permanece.
Se pintou quadros, eles ainda permanecem.
Preferiu gravar músicas? Olhe só, elas também permanecem.
Desaprendemos a viver em prol do TODO. Que todo? A humanidade.
Na verdade, bem sinceramente, nunca aprendemos direito. Talvez (apenas talvez) o único lugar onde este sentimento ainda resista é no núcleo familiar. Mesmo assim nem sempre vemos isto.
Triste, não!? Tem salvação?? Eu acredito que sim. E, no fundo, se não acreditasse, bem possivelmente eu já teria me tornado um “comum”, em busca de bens, fama e riquesas incontáveis.
Mas não, não é este o caminho que quero escrever. Não é esta a história da minha vida que quero percorrer.
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