Uma estrada embranquecida pela neve, tão neutra e desafiadora quanto uma folha de papel branca antes das primeiras letras transformarem sua natureza, é desbravada por um carro solitário. Assim começa “A Partida” (Departures/Okubirito), longa-metragem japonês vencedor do Oscar de Filme Estrangeiro em 2009 e dirigido pelo veterano Yôjirô Takita (detalhe, não fazia ideia desse prêmio). Mais que um filme, temos aqui uma oportunidade de mergulhar na cultura sempre cerimoniosa e cadenciada do Japão sob sua própria ótica. Entender o humor pode parecer um pouco difícil, porém é inevitável não ser arrebatado pela emoção latente e poderosa. Chorei. Chorei muito. Essa história chegou na hora certa para me ajudar a extravasar e, felizmente, para me transformar.
Minha relação com o Japão começou cedo. Cresci ao lado de uma grande colônia japonesa em Itaquera, no extremo Leste de São Paulo. Logo, estudei com descendentes diretos de imigrantes, aprendi a jogar tênis de mesa com eles, descobri a importância dos ancestrais, convivi com muitos dos costumes e sempre respeitei demais aquela fixação pelo ritual, seja ele qual for, eles sempre têm um procedimento específico para cada circunstância. Filmes de samurai sempre me atraíram, por conta dessa ligação, e também do grande senso de devoção e entrega envolvendo aqueles guerreiros. Aliás, ADORO “O Último Samurai”, mas nunca dispenso a chance de ver “Kagemusha”. A paixão pela obra de Hayao Miyasaki foi inevitável e até curto alguns dos terrores espirituais. Nesse caso, porém, não há nada disso. Existe apenas um drama social e familiar em “A Partida”.
Um homem em busca de um novo começo. Um sujeito disposto a encarar um trabalho complicado para sustentar a família. Um adulto vivendo seu verdadeiro rito de passagem, cujo objetivo não é seu crescimento, mas sim, o encerramento de ciclos e da compreensão de seus ancestrais. De certa forma, Daigo Kobayashi é Curtis LaForche, de “O Abrigo”. E também sou eu. Facetas do homem moderno, manifestas em culturas e momentos diferentes, mas, sem dúvida, definitivas. Como prosseguir frente a uma realidade capaz de se transformar tão rapidamente? Num mundo onde conselhos e experiência se esvaem na velocidade da nova moda online? Onde o talento e a especialização perdem espaço para o barato e desqualificado? Essas dinâmicas surgem de forma natural em “A Partida”, pois Daigo (o protagonista) é um músico especializado no violoncelo e perde o emprego em Tóquio, sendo forçado a retornar à casa da família em Yamagata. Entretanto, conviver com a memória da mãe morta ou a distância das lembranças do pai que os abandonou seriam situações confortáveis e dramaticamente insuficientes para o desenvolvimento dessa trama, logo, algo mais incisivo era necessário. Assim, ele é constantemente colocado em contato com circunstâncias extremas de perda, morte e contemplação do que, de fato, é estar vivo. Ele vai trabalhar para uma casa funerária.
Muita coisa pode ser explorada por conta dessa simples escolha profissional. A primeira, e mais surpreendente, é a reação cultural da exclusão social aplicada ao personagem. Sua índole é questionada, sua “pureza” deixa de existir e todo o senso de responsabilidade e sacralidade com o qual o ritual funerário é executado é questionado. Para que fazer um serviço necessário e culturalmente importante e ganhar bem fazendo isso, se o pagamento, de fato, é o auto-exílio? A pergunta é válida e respondida ao longo do filme. Daigo faz um serviço odiado e criticado até que seus detratores precisem de seus préstimos. O maior problema social é o fato de “explorar a morte financeiramente”. Aí surge outro paralelo interessante, pois qual é mesmo o resultado tanto da mídia, quanto da internet e das próprias pessoas a explorarem cada tragédia, fofoca ou problema alheio ao extremo? A comparação pode soar desconexa, mas retirando-se a alegoria, a mensagem é clara. Quase tudo é feito para se concentrar riqueza. E é justamente no crescimento pessoal e no extremo respeito, perfeccionismo e seriedade com o qual Daigo cumpre sua função que “A Partida” oferece sua solução: fazer por escolha, por vocação, porque alguém precisa fazer direito, não somente pelo dinheiro.
De modo algum quero pregar, cada um sabe de si. Entretanto, seria até irresponsável não chamar a atenção para um paralelo tão poderoso e necessário vindo de um dos países mais capitalistas do mundo. Se há um país plenamente capaz de entender da dissipação dos valores morais, sociais e de sua herança cultural, é o Japão, com sua cultura consumista veloz e predatória. Mas eles também são bons em lutar contra essa característica. Talvez por isso tenha gostado tanto de “A Partida”, por ver alguém postulando a favor da escolha, da responsabilidade sócio-cultural e da importância do ancestral na sociedade moderna.
É aquela velha máxima: é preciso compreender o passado para se preparar para o futuro. Daigo é forçado a tomar decisões, ver sua esposa o abandonar por conta da vergonha pelo “trabalho do marido” e isso o transforma, reforça suas convicções e permitem que sua perícia como violoncelista se transfira para outra ocupação, com cada movimento de seus braços sendo traduzidos em música na montagem. Confesso ter estranhado o grande número de composições de piano, quando o pano de fundo do violoncelo estava tão estabelecido e pronto para ser usado.
O filme é belíssimo, sem exageros e com uma temática arrojada. Aprende-se muito sobre um povo ao compreender como ele lida com a morte. Aprende-se coisas boas e ruins e o roteiro não mede esforços para mostrar o antagonismo entre o perfeccionismo do ritual e os extremos sociais envolvendo sexualidade, códigos de conduta e irresponsabilidade da juventude, constantemente vítima de seus exageros ou decisões definitivas. Eles abordam, inclusive, o problema sério da asfixia por gás carbônico, um dos suicídios mais populares entre jovens japoneses.
Esse tipo de mistura é impactante. Tanta beleza e tanta dor, só podem resultar na reavaliação de conceitos, na ativação de memórias e na reconstrução de planos. Os japoneses com quem cresci eram péssimos para lidar com emoções. Ou reprimiam tudo, ou explodiam rapidinho. Esse filme mostra o lado mais reprimido, de um personagem que mantém a fachada firme, mesmo quando as bases já viraram mingau e só chora quando está só, mesmo que nunca vejamos. Armadura emocional, claro, mas isso diz muito sobre o indivíduo, sobre sua busca por afirmação e também pela pureza de suas emoções, algo que lhe pertence e que não deve ser compartilhada. Parece até estarmos diante de dois sujeitos diferentes, numa clara dissociação comportamental. E, seja lá como for, esses caras encontram um equilíbrio maluco e conseguem viver.
Mas como chegar ao ponto de ruptura é necessário e “A Partida” faz isso com maestria. Comecei a chorar quando ainda faltavam 40 minutos de exibição e só fui parar quando a tela escureceu. A construção de personagens é tão envolvente que, quando as cenas emocionais começam, é impossível permanecer alheio. Você simplesmente é levado pelo roteiro, pelas sensações. A jornada pessoal, mas, no final, você torce por uma redenção social, pela compreensão mais ampla e irreversível. Uma das máximas do druidismo é: cure a si mesmo, cure a comunidade, cure o mundo. Bem, na terra do xintoísmo, um filme curou um personagem, aliviou uma comunidade e levou sua mensagem para o resto do mundo. Assista!
[box type=”shadow”]Fábio M. Barreto é jornalista, cineasta e autor da ficção brasileira “Filhos do Fim do Mundo“, publicada em 2013 pela editora Fantasy/Casa da Palavra, integrante do Grupo LeYa. Mora em Los Angeles e está escrevendo seu segundo romance, Snowglobe.[/box]