O texto abaixo não é uma crítica cinematográfica, tampouco é uma análise de Star Wars: O Despertar da Força, que assisti ontem de manhã, dentro da Disney, em Burbank. Ele surgiu da minha necessidade de transmitir um sentimento, uma experiência, algo que transcende roteiros ou conhecimento técnico, algo que só pode ser caracterizado como inexplicável. Essa é a minha relação com a Guerra nas Estrelas (Star Wars), algo que existe ao longo de toda a minha vida, que trouxe grandes alegrias e tristezas inesquecíveis, algo que, até hoje, afeta minha vida como marido, pai e profissional. Não sei ao certo como classificar esse texto. Ele simplesmente surgiu.
Espero que goste, boa leitura e Que a Força Esteja Com Você!
Sobre Meninos e Sagas
Ninguém percebeu quando o Garoto vasculhou as poltronas com atenção redobrada e manteve o olhar fixo no lugar ideal. Bem no meio do cinema, quase nas últimas fileiras, onde sempre gostava de ficar. Com sorte, nenhum penteado maluco, pessoa muito alta ou os tagarelas ficariam longe dele e o campo de visão continuaria livre. A emoção estava estampada no rosto. A paixão tomava a camiseta e o agasalho. O sonho estava prestes a se tornar realidade. Presente. Hoje. Agora. E a expectativa daria lugar à memória. Havia dois lugares vagos, um de cada lado. Ele ficou empolgado com a chance de ficar sozinho. E o Garoto teve um bom pressentimento sobre aquela exibição quando dois casais sentaram-se à frente e a poltrona imediatamente à frente dele ficou vazia.
O Garoto decidiu aproveitar ao máximo aquele momento. Era algo único, irreplicável e especial. A chance era única e ele ainda não sabia como havia parado ali. Preferiu não pensar no assunto. Tateou o braço móvel de poltrona. Era real. Estava acontecendo. Fechou os olhos e respirou fundo, em busca de uma comunhão com o clima de apreensão e empolgação que começava a tomar a plateia.
Quando abriu os olhos, o Garoto sentiu a presença da Moça, na poltrona da direita. Ela era linda e sorriu para ele. Tímido, sorriu para dentro, numa mistura patética de educação e incompreensão máxima. Ninguém sorria para ele. Rir da cara dele era normal. O nerd gordinho, dono do recorde de foras da escola, com quase nenhum amigo e mais interessado em livros e filmes, que na banalidade da vida no subúrbio era motivo de piada. Nem ligava mais. Era assim e pronto.
Mas, naquele dia, nenhum dos piadistas estava ali. Nada daquilo faria sentido para eles. Só mais um filme de navinha, pensou. Pew Pew. Ela sorriu para ele, como se ninguém nunca tivesse feito aquilo antes e nunca mais faria dali para a frente. E a Moça fez pior.
– Oi – ela disse, sorrindo novamente.
– Oi – ele disse, pensando em largar tudo, sair gritando e procurar um médico. Mas esse pavor durou pouco e tudo ficou ainda mais desesperador. Está tá me confundindo com alguém, deve ser isso. Isso não afastou a timidez, claro. E, como sempre fazia, resolveu ignorar. Ela perceberia o engano, olharia para o filme ou até mesmo iria embora, afinal, a pessoa pela qual ela procurava deveria estar ali, em algum lugar. Tinha que ser isso.
Em puro desespero, o Garoto fechou os olhos novamente e tentou ficar calmo. Estava ali para ver um filme. Mas como curtir algo na tela se o coração palpitava feito maluco e ele só conseguia pensar na Moça? Amor à primeira vista era coisa de menininha. Isso não acontecia de verdade. Bom, isso não acontecia com ele. Nada disso acontecia com ele. Primeiro o filme impossível. Agora, a mulher com os olhos mais lindos do mundo estava olhando para ele. Mesmo com os olhos fechado, ele sentia. Ela continuava olhando.
Arriscou uma espiadela. Bingo! Lá estava ela. Dando uma risadinha daquelas cheias de significado – cuja maioria ele nunca poderia entender mesmo – e como se achasse tudo aquilo muito fofo. Não tem nada de fofo aqui, moça. Fechou os olhos novamente e aí a ficha caiu: Ela vai me pedir para mudar de lugar! É isso. O namorado dela está chegando e vai pedir pra eu pular uma cadeira pro lado. Pronto, só pode ser isso.
Abriu os olhos e decidiu falar com ela, mas ela não estava mais lá.
Perdeu o sorriso tão rápido quanto se apaixonou por ele. Perdido num oceano castanho dos olhos intensos e nas ondas do cabelo escuro, bravios o suficiente para afugentar os fracos e convidar os intrépidos à aventura.
Os ombros baixos, o olhar distante e a bufada derrotada aconteceram antes que ele percebesse. Reflexos de algo novo, arrebatador.
O Garoto coçou o queixo e virou-se para a esquerda. E notou a presença do Homem. O sujeito deu um sorriso cheio de sabedoria, quase condescendente. Algo soava familiar.
– Ficou pensando no que falar e ela foi embora, né? – disse o mais velho, que vestia um colete preto sobre uma camisa branca.
O Garoto deu de ombros, com um meio sorriso. – Humpf.
– Ela gostou de você. Devia ir atrás dela – continuou.
– Ninguém gosta de mim, moço. E tenho que ver o filme.
O Homem ficou pensativo por um momento, sorriu novamente e falou, olhando na direção da tela. – Ninguém gosta mesmo de você ou não gostam do jeito que você acha que deveriam gostar?
Ele não esperou pela resposta do Garoto, que, para variar, ainda procurava as palavras certas antes de falar. As ideias estavam claras na cabeça, como sempre, e teriam saído rápido no teclado de um computador, mas na hora de falar, bem, as coisas nunca aconteciam como deviam. Ele continuou. – A vida fica mais difícil quando a gente decide que está jogando sozinho. Mas, na verdade, sempre tem alguém por perto, alguém que gosta da gente por quem somos, ou de alguma porção, pelo menos. Você está aqui. Pelo jeito, alguém gosta de você a ponto de deixar você entrar. Ela gostou de você. E, bem, até eu gosto de você. Você parece um garoto inteligente. Só precisa abrir mais essa boca e parar de ter medo do mundo.
– Não é fácil – o Garoto respondeu, finalmente.
– Eu sei.
Algo, definitivamente, soava familiar no sujeito.
– Eu te conheço? – perguntou o Garoto.
O sujeito não respondeu e voltou a falar. – Momentos difíceis são como bons filmes. Ou grandes aventuras. A gente nunca sabe o que esperar. Ninguém sabe se vai sair vivo, se vai amar, odiar, se vai encontrar a mulher dos sonhos – e gesticulou com a cabeça na direção da poltrona da direita; a Moça havia retornado, mas não prestava atenção nos dois. Parecia entretida com a bolsa – mas, quando é nossa hora, não temos como escapar. Nunca é simples encarar os medos, e as verdades que um filme pode revelar… ou as provações de uma aventura verdadeira.
– Todo mundo sempre diz que é só um filme.
– E você acredita em – fazendo aspas com os dedos – acredita em todo mundo?
– Não – ponderou o garoto. – É mais que isso.
– É uma aventura.
– É minha vida.
– E você está vivendo como se fosse só um filme – disse o Homem.
Os olhos do Garoto perderam-se na direção da tela, coberta por uma cortina vermelha de veludo pesado. – Você nunca entenderia.
– Às vezes, eu mesmo me surpreendo com essas coisas. Pode falar. Ela não vai te ouvir.
O Garoto ficou encabulado e encolheu-se na poltrona. E, tomado por algum impulso inexplicável, começou a falar, embora estivesse incrédulo na própria capacidade de se abrir com um estranho.
– É como os personagens do filme fossem mais reais que minha própria família. É como se eles cuidassem de mim. Mostrassem o caminho. Coisa que ninguém entende lá em casa, então imagina um estranho como você.
– Não sou um estranho.
– Eu te conheço?
– Estou aqui, não? – perguntou, retoricamente. – Estamos prontos para ver o mesmo filme, na mesma sessão secreta e, até onde eu imagino, com a mesma empolgação. Somos muito mais próximos do que você imagina. Já parou para pensar que eu posso ter passado por tudo isso?
O Garoto ficou sem resposta por alguns instantes. Pensando nos pais distantes, nos irmãos incapazes de valorizar algo tão importante para ele. E, sem saber a razão, começou a pensar em ser filho. Em ter filhos. Em ensinar. Em correr riscos. – É como se todas as lições estivessem na tela ou nas páginas dos livros.
– Algumas estão. Outras, nem tanto. Não existem tantas possibilidades quanto você imagina. O cinema mostra uma versão, uma série de decisões. Ele pode mostrar um caminho, mas a vida real é formada tanto por erros quanto por acertos e é muito mais dinâmica que o roteiro de um filme de navinha.
– Odeio quando chamam assim.
– Eu também – disse o Homem. – E você está prestando atenção. Isso é bom. Do que adianta aprender tanto sobre família, legado, amizade e sacrifício, se, quando mais importa, você fica isolado e sentindo pena de si mesmo? Como vai ensinar seus filhos, um dia, sobre tudo isso se você se escondeu quando deveria ter encarado as dificuldades?
O olhar do Garoto fixou-se no rosto do Homem. Definitivamente, havia algo familiar naquela fisionomia. Ou naquela conversa. A ansiedade crescia. O tempo corria. O filme estava prestes a começar.
– Não tenho filhos. Ainda sou novo para isso – e olhou para a Moça, que rabiscava algo num bloco de notas todo enfeitado.
– Ainda, sim. Mas um dia vai ter, um dia vai errar e, nessa hora, encarar o erro será a única opção. É fácil ignorar coisas que nos afetam, mas é impossível dar as costas quando seus filhos e filhas estão sofrendo. Ou pagando pelos nossos próprios erros.
– Se um dia isso acontecer, não quero errar.
– Mas você vai. Pode apostar – disse o Homem. – Notou uma coisa? Seu futuro é como esse filme que ainda nem vimos. Você tem milhares de ideias para ele. Quer que seja tudo perfeito, fantástico, cheio de emoção, aventura e sentimentos que só existem na sua cabeça e ninguém será capaz de igualar, muito menos superar essa expectativa.
– Mas é a minha vida. Quero que ela seja demais.
– E ela vai ser, com ou sem tantas coisas épicas quanto você espera. Hoje, aí no seu lugar, você tem milhares de opções. Mas, lá na frente, o passado será como um roteiro de filme. Só uma linha de acontecimentos fixa, imutável, às vezes vai até parecer que outra pessoa escreveu. E, depois de se recusar a acreditar, você vai aceitar que foram suas decisões e escolhas. Tudo que você fez escreveu essa história.
– Então devo simplesmente aceitar tudo e me preocupar em não errar, é isso?
– Pelo contrário, você precisa fazer tudo que achar certo. Siga seus instintos, inspire, lute pela coisa certa… mesmo que as chances de sucesso sejam pequenas.
– Ou morrer tentando.
O Homem não respondeu. Coçou o nariz e pigarreou. – A morte não é nada perto de uma vida ditada pelo arrependimento.
– E o que aconteceu com o lance de “vida ser um aventura” e tal? – instigou o Garoto.
– As duas coisas vão sempre existir. Você precisa escolher se vai dar mais valor para um monte de coisas certas… e boas. Ou se vai deixar um erro guiar o seu caminho e definir toda a sua vida.
– Eu errei, né?
– Quando?
– Quando não falei com ela. Quando achei que só diria bobagem e levaria mais um fora. Quando, bem, fui eu e deixei a chance passar.
– Ela ainda está do seu lado, não está?
O Garoto olhou. Ela sorriu novamente, mas parecia olhar através dele.
– Sim, parece que sim.
– Então, ainda dá tempo.
– Mas o filme vai começar – alertou o Garoto.
O Homem sorriu.
– Ei, Garoto. Toma aqui – disse o Homem, entregando um lenço para o Garoto em lágrimas. – O filme acabou faz tempo. É hora de ir.
– Como assim? – disse o Garoto, olhando ao redor, vendo tudo se transformar num borrão e, de súbito, se ver de pé, com as luzes acesas, de braços dados com uma versão mais velha da Moça. Estavam parados na saída da sala de cinema. A cortina terminava de se fechar e ele olhava para a sala vazia. No lugar onde havia se sentado, ao lado da esposa, pelas últimas duas horas, o último vulto de um grande amigo se dissipava. Assim como a própria imagem, mais jovem e sonhadora, partia para uma nova jornada. Os anos podem ter separado as duas versões do mesmo Fã, seja o garoto vislumbrado ou o adulto pé no chão, mas ambos sabiam que nada mais seria o mesmo depois daquele dia. Depois daquelas lágrimas. Da sensação de que a magia original nunca retornaria, mas a paixão continuava acesa.
Porém, nada superava a saudade. A memória. A dívida de vida. A certeza da lição aprendida, da aventura inesquecível e, lá no fundo, da certeza de uma vida bem vivida. E grandes aventuras sempre cobram seu preço, ao revelar segredos terríveis, nos forçar a encarar o horror do Lado Negro e, mesmo assim, ainda buscarmos a esperança no Lado da Luz. O Garoto continua olhando para o futuro, enquanto o Homem sabe que tudo é parte do passado, como se trilhassem duas versões diferentes, e simultâneas, do mesmo caminho, vivendo dois presentes em eterno conflito e perfeita harmonia.
As últimas lágrimas caíam em meio aos primeiros sorrisos, quando um beijo carinhoso quebrou o feitiço. O Homem e o Garoto ficaram para trás, ou encontraram algo melhor para fazer, quando o Fã seguiu em frente, feliz por fazer parte de um novo mundo no qual a Força persiste, a luta continua e onde sempre haverá esperança.
Não tenho como explicar… Você é um ser humano fantástico Fabio Barreto. Conheci seu trabalho através do Rapaduracast, e de cara virei seu fã, suas opiniões, suas brincadeiras, seu conhecimento e seus sentimentos definitivamente me cativaram.
Vim para o seu site esperando ler um texto sobre o novo filme do Star Wars – O despertar da Força, pois sou um fã e tenho poucos amigos que entendem o motivo de me emocionar, bater palmas com aparições e chorar em momentos tocantes desse filme. Você é alguém que definitivamente entende essas sensações …
Pois foi quando me deparei com sua introdução, bem diferente do que eu imaginava, mas me propus a ler, e foi a decisão mais acertada que poderia ter… A cada parágrafo lido, meu coração se apertava … Como ele consegue traduzir tão bem a sensação de amar algo e se envolver com aquilo de tal forma que muda sua vida por completo … pensei … e você com maestria teceu suas palavras para mais uma vez me emocionar.
Muito obrigado por seu texto e saiba que seu trabalho é valorizado por muitos, amado por alguns e definitivamente transformador para aqueles que realmente importam.
Muito obrigado, do seu fã Lucas Martins.
Só posso agradecer. 😀
Como ler este texto sem sentir a emoção apertando o peito e as lágrimas de fã ameaçando transbordar? Cada pequena revelação discreta e genialmente colocada neste diálogo, a sensação de estar em casa e ao mesmo tempo em uma galáxia tão, tão distante… Genial, Barreto. Foi a homenagem mais sincera, doce e emocionante que li e ganhou respeitosamente, a posição de favorita no meu coração.
Parabéns e obrigada por esta jóia.
Lindo demais. Forte demais. Pessoal demais. Identificável demais. Parabéns pelo texto, companheiro, são depoimentos como estes que fazem esses “garotos” creem que tudo vale a pena. 🙂
É isso aí garoto!
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Eu sei bem o que tudo isso que você expressou em tão belas palavras significa. Eu sei bem…