Florence and the Machine celebra o fim das vacas magras nos auto-falantes enquanto escrevo esse texto. Nunca comprei nenhum álbum da inglesa, embora conheça várias músicas e aprecie bastante o estilo dela. Tampouco baixei os arquivos ilegalmente, afinal, sou totalmente contra a pirataria e o consumo ilegal de material autoral. Qual o milagre? O logotipo verde, com três ondas negras, do Spotify está selecionado na minha barra de ícones. Eric Clapton já está tocando Me and the Devil e, assim que a próxima música acabar, vou ouvir algum comercial genérico [um restaurante local, para ser exato; eles têm lagosta!]. Esse é o preço por poder ouvir tantas músicas, de tantos artistas que adoro, sem gastar uma fortuna com discos que, em muitos casos, já comprei ou ganhei ao longo dos anos. O Spotify é meu companheiro nas madrugadas com livros, traduções, roteiros e outros trabalhos. Ele mistura de tudo um pouco, ouço de Tenacious D e Judas Priest a Adele e Clannad. É chamado de sistema “freemium” – gratuito on demand, ou assinaturas. Assim como nos jogos, essa modalidade de serviço, já popular com o Pandora, Rdio e Spotify, provocou alterações no mercado e, nessa semana, criou ondas malucas por aí quando Jay Z e turma – incluindo Madona, Jack White, Daft Punk, trocentos rappers e cantores de hip hop para quem não dou a mínima – lançaram o Tidal. Sem opção gratuita, com material exclusivo dos integrantes – 16 deles acionistas do empreendimento –, entre músicas e vídeos, canções em som de altíssima qualidade e com o objetivo de dar força e voz aos artistas, lesados pelos modelos atuais.

É uma briga boa pela qual o cinema também passa. O primeiro passo é entender a raiz do problema. No cinema, se todo mundo passa a consumir filmes pirateados, quem vai pagar a conta da produção do longa-metragem, que é feito antes de qualquer receita de bilheteria ou eventuais patrocínios? A resposta assombra Hollywood até hoje, embora um novo caminho já tenha começado a ser traçado pelas iniciativas de Netflix, Hulu e Amazon Prime que, além de material original, cobram pelo consumo – especialmente daquela pessoa desinteressada por assistir no cinema e prefere ver tudo em casa, no computador –, logo, gerando uma nova fonte de renda, diminuindo o prejuízo e mostram que há sim uma luz no fim do túnel. Entretanto ainda há muito a se debater e evoluir, afinal, as receitas dos serviços de streaming não são suficientemente grandes para financiar obras de milhões de dólares.

O cinema, porém, sofre essa constante evolução há décadas. Saindo de uma simples tela e evoluindo para diversas formas de exibição e consumo, basicamente, adaptando-se ao cliente, em vez de forçar um único modelo. Mas a música, em tese, não deveria passar pelo mesmo? Sim e não. Sim, por ser um dos produtos mais longevos e de fácil consumo do entretenimento. Cliquei aqui e o Cream começou a tocar Crossroads, assim como Dinho poderia brincar com Robocop Gay ou Miles Davis pira completamente em Bitches Brew. O consumo é imediato, inesquecível, marcante e facilmente retransmitido. A música evoluiu do submundo dos shows distantes e icônicos, como aquele do Sex Pistols, em Manchester, em 1976, no Lesser Free Hall; Woodstock; ou The Beatles no The Cavern Club; e foi imortalizada com LPs e cassetes. Então, veio a era do videoclipe e o audiovisual ganhou mais popularidade, deixando os documentários cinematográficos um pouco para trás, e repetindo-se à exaustão na MTV, bem perto do fenômeno do CD; depois o MP3 e, agora, o streaming. Mesmo com o onda retrô das vitrolas e do vinil – eu mesmo tenho uma, já recomprei 6 álbuns e ouço de forma quase ritualística –, quem comanda o mercado não são remasterizações do Led Zepellin, novos álbuns do Pink Floyd ou alguma viagem inconstante e maluca do Metallica; a música atual está nas mãos de Taylor Swift, Jay Z, Beyonce, Rihanna e cia. O pop já venceu faz tempo, agora ele só resolveu entrar na briga e defender os próprios interesses. “Outras pessoas estão escrevendo a história pela gente, está na hora de fazermos isso por nossa conta”, define Jay Z no vídeo de lançamento. E o Tidal é justamente isso.

Em termos de mercado, eles estão mais que certos. As gravadoras já não pagam tão bem aos músicos há tempos, isso não é segredo algum. Logo, os shows transformaram-se na maior fonte de renda de bandas e artistas, tornando os espetáculos cada vez mais elaborados, caros – os ingressos no Brasil que o digam! – e frequentes, o que reduziu um pouco o elemento “imperdível” e passou a se tornar algo esperado, sem, necessariamente, afetar a qualidade. É mais uma mudança na relação do que no que é apresentado. Com a chegada do streaming, canções passaram a ser executadas à exaustão, de acordo com a predileção e ordem do consumidor, e no serviço freemium, a um custo quase ínfimo. Logo, o artista pensa: é meu trabalho, a pessoa consumiu, quero receber. E está completamente certo. Jay Z é um empreendedor renomado; um daqueles caras cujas decisões alteram os rumos do mercado todo. Ele partiu de uma base sólida, do centro da meritocracia, e bateu o pé: trabalhei por isso, logo, se alguém quer escutar, vai ter que pagar.

O que, num cenário ideal, é o certo. Provavelmente, se o Spotify deixar de ser freemium, eu assinaria uma versão paga. Entretanto, a expectativa de conversão de consumidores em clientes é de apenas 6%, algo ínfimo perto do que o mercado tem a oferecer e à comparação do número de assinantes do Netflix, que é o modelo nas projeções desse tipo de serviço. Estima-se que 40 milhões de pessoas assinem serviços pagos de streaming musical no mundo todo, contra 57,5 milhões de assinantes do Netflix. Entretanto, os Estados Unidos são responsáveis por apenas 7.7 milhões de usuários pagos de serviços de música, de acordo com a RIAA (Recording Industry Association of America). Ao renegar o freemium e formar essa coligação trilhardária, o Tidal entra para arrancar esse público direto das mãos de Spotify e Pandora (cujo sistema já está um tanto defasado), apostando na fidelização dos consumidores e no poder da exclusividade.

Ao olhar a lista de nomes envolvidos no Tidal, não sinto o menor interesse de pensar em assinar o serviço, tampouco colocar meu cartão de crédito lá para poder fazer o Free Trial. O sistema não oferece versão gratuita e, para entrar, é preciso definir uma forma de pagamento. O som padrão custa US$ 9,99 por mês e o som hi-fi custa US$ 19,99. O layout do serviço, pasme, é muito parecido com o do Spotify e eles apostam numa curadoria especializada para dar ao ouvinte o que ele quer. O grande diferencial é uma biblioteca parruda de vídeos, clipes, entrevistas e outros materiais em audiovisual das celebridades. Já há um precedente nisso tudo. Há pouco tempo, Taylor Swift renegou o Spotify e já vendeu mais de 9 milhões de álbuns no mundo todo (e está quase batendo os 5 milhões de cópias nos Estados Unidos). Ela havia faturado cerca de US$ 390 mil pelos 46 milhões de execuções da música Shake It Off, pouco antes de cair fora. O Spotify paga entre US$ 0,006 e 0,0084 por execução. Entretanto nem todo mundo ficou feliz e, embora a hashtag #tidalforall tenha disparado no Twitter, o próprio vídeo oficial do produto (que você pode ver no início dessa matéria) tem atraído um número imenso de consumidores descontentes, que acusam os acionistas de, ha!, quererem dinheiro. Que absurdo!

Você pode ver uma comparação direta dos dois aqui:

O entretenimento ainda vai passar um bom tempo sendo assombrado pelo fantasma do consumo gratuito. Seja no cinema, na literatura ou na música, existe uma geração crente no “direito” de consumir o que quiser, na hora que quiser, sem pagar um tostão, afinal, se está disponível para que o sujeito vai pagar? O Netflix começou a provar o contrário, mostrando que, com um preço acessível, a taxa de conversão é maior do que se esperava e que, nem todo mundo, está entregue à pirataria. A música, assim como o jornalismo, de certo modo, vive um momento crucial para redescobrir o próprio valor, incutir uma mentalidade sadia de coexistência no público, e fazer o consumidor fazer parte do negócio. Essa evolução é fundamental, pois apenas plataformas sólidas, com serviço bom e preço acertado, serão capazes de convencer uma pessoa a pagar a mensalidade para fazer algo que, bem, basta ligar o rádio e consumir gratuitamente. Por esse lado, a mentalidade do crowdsourcing do Kickstarter e do Patreon, por exemplo, acaba ajudando ao formar uma camada de consumidores que valorizam aquilo que recebem, decidem participar do processo e garantir a continuidade daquilo que apreciam. Embora os números do mercado onde o Tidal está se metendo sejam imensamente maiores que o dos projetos de crowdfuding, tudo tem a ver com a mesma coisa: consumo responsável.

O maior problema disso é a mazela que a TV a cabo sofre: mesmo com serviço premium, os anúncios reinam, pois, em algum momento, decidiu-se que só a assinatura, já inflacionada, não é o suficiente para manter os canais de pé. Se a música está, nesse momento, tirando o braço de ferro com a oferta de mercado e dizendo que acesso exclusivo e qualidade são mais relevantes, quem garante que, num futuro próximo, não decidam aumentar camadas de acesso para elevar o preço ou quererem viver única e exclusivamente desse tipo de iniciativa? Ninguém sabe o futuro, mas uma coisa é certa: quando o pagamento direto acontece, a cobrança do consumidor aumenta e o desejo dos acionistas é ampliado conforme lucros chegam. É inevitável.

tidal_lineup

De qualquer maneira, é melhor do que colocar a produção musical em risco pela ausência de recursos financeiros na equação. Há um limite até onde artistas conseguem viver apenas de dinheiro do adsense do YouTube – outro grande responsável pelo consumo ‘não-pago’ de música – ou de ferramentas próprias. Tornar-se comercial já não há “trair o movimento” há tempos, é uma necessidade. Talvez, com iniciativas como o Tidal, novos talentos não precisem se escravizar com contratos abusivos, e sempre problemáticos, e possam encontrar um novo caminho para receberem o que merecem. Ouvintes para isso, eles têm de sobra.

O público da música pop é gigantesco. São os devotos, os membros de fã-clubes, as meninas malucas, os desesperados que consomem qualquer coisa; ou apenas aquela pessoa que gosta de dançar e segue as tendências. Como fã de rock clássico, assumo, eles ditam o momento. Estou feliz vivendo na década de 1970 e esperando o dia em que minha vida vai se transformar nas cenas de Quase Famosos, mas tudo bem. Todo mundo acaba se beneficiando, contanto que a música continue a tocar. Pois, when the music wouldn’t play, that’s the day the music died, já avisa Don McLean na calada da noite.

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Fábio M. Barreto

Fábio M. Barreto novelista de ficção, roteirista e diretor de cinema e TV. Atuou como criador de conteúdo multimídia, mentor literário e é escritor premiado e com vários bestsellers na Amazon. Criador do podcast "Gente Que Escreve" e da plataforma EscrevaSuaHistoria.net.
Atualmente, vive em Brasília com a família.

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1 Comment

  1. O mercado de streaming se mostra uma alternativa tão poderosa ao sistema de venda de faixas e álbuns, que a Apple – que na era Jobs não admitia que esse sistema pudesse funcionar, lá nos idos de 2002 – está prestes a entrar na briga com o relançamento da ferramenta da Beats.
    É interessante ver nomes como Taylor Swift e Jay-Z argumentando que o modelo do Spotify não valoriza o artista, e que com o Tidal será uma nuvem cor-de-rosa, quando é evidente que o Tidal NÃO SIGNIFICA mais grana pros artistas. Exceto quando os 16 acionistas, que incluem gente do Pop-Rock (Chris Martin), EDM (Daft Punk, Deadmau5), Country (Eric Church) decidirem vender seus 3% da empresa.
    Se a grana dos direitos a cada play dado vai toda pra gravadora, que aí repassa pro artista o que lhe convêm de acordo com os contratos assinados, seria o momento de se questionar como o bolo é repartido.

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