Ao tentar transformar grandes lendas em filmes repletos de ação e batalhas, Hollywood deixa de lado antigos mitos para mostrar heróis desprovidos da magia e da espiritualidade de suas épocas.
Em todo o mundo, crianças ouvem suas primeiras histórias sobre grandes heróis, façanhas inacreditáveis e lugares maravilhosos por meio da grande mitologia e espiritualidade existente nas culturas européias e asiáticas nos últimos milênios, porém, nos últimos anos, temos vivenciado um movimento no qual os grandes estúdios decidiram abandonar o lado mítico destas histórias para, por exemplo, transformar o mais poderoso dos semi-deuses em um simples guerreiro.
É o que vemos, por exemplo, em Tróia – que poderia se chamar apenas BRAD, afinal de contas, né?. Sob o comando de Wolfgang Petersen (Air Force One) e roteiro de David Benioff (A Última Noite), uma quantidade enorme de recursos, elenco estelar e um grande esforço de pesquisa foram colocados à disposição para recriar a, até hoje incerta, Guerra de Tróia. Exércitos grandiosos, uma história de amor como motivação, interesses políticos como agentes do conflito, um herói imbatível, etc, etc. Tudo muito bonito e certinho para o público, porém, o que a equipe de Petersen deliberadamente tirou do caminho foi toda a mitologia grega, que regia, por muitas vezes, as vontades de reis, motivava soldados e protegia heróis como Aquiles. Basta lembrar da força do Conselho dos Éforos no recente 300. Se os deuses mandavam, era bom obedecer. Ainda bem que Frank Miller inseriu esses elementos e Zack Snyder manteve tudo no filme.
Numa breve passagem de Tróia, Aquiles fala com sua mãe, que profetiza sua morte caso ele vá à guerra. Entretanto, nada se fala sobre ela ser a ninfa marinha Tétis e sobre o fato de que ela, na tentativa de o tornar invencível, mergulhou-o no rio da Estige segurando-o pelo calcanhar. Como esta única parte não foi banhada pelas águas protetoras criou-se ali seu ponto fraco. O calcanhar de Aquiles. Outro guerreiro com um ponto fraco similar é o nórdico Ziegfrid, que tinha uma pequena falha em formato de folha em sua proteção mítica ao ser banhado pelos deuses. Mesmo quem não entende de mitologia, é só assistir Cavaleiros do Zodíaco e lembrar como um dos cavaleiros de Hilda dança por ter o mesmo ponto fraco de seu predecessor.
Vários fatores míticos são atribuídos a Aquiles: sua armadura foi feita por Hefesto, o ferreiro dos deuses, filho de Zeus e Hera; seu destino havia sido decidido anos antes de seu nascimento pelo próprio Zeus e por Poseidon; e foi descrito como um deus por Homero, na Ilíada. Em várias versões da história, também vemos a intervenção direta de alguns deuses nos combates da Guerra de Tróia. Mas, no filme, tudo é muito humano e apenas o templo da praia – destruído e profanado por Aquiles – lembra de que existiam forças “maiores” naqueles tempos. Saudades do tempo em que filmes como Fúria de Titãs ainda podiam mostrar a interação entre a Humanidade e suas crenças mais antigas. Com direito a Lawrence Olivier interpretando Zeus e efeitos visuais e produção executiva de Ray Harryhausen.
Se os deuses do Olímpo puderam ser ignorados em prol da ação e de batalhas grandiosas, o que dizer então da versão crua e puramente militar do lendário Arthur Pendragon?. O filme Rei Arthur, dirigido por Antoine Fuqua (Dia de Treinamento), que muitos esperavam ser uma adaptação da trilogia Rei do Inverno, de Bernard Cornwell, acabou mostrando um Arthur romano, basicamente um líder militar atuando contra os “bárbaros” bretões e apoiado por leais e letais cavaleiros vindos de uma terra distante. Mesmo com a presença do competente autor e estudioso John Matthews – autor de diversos livros sobre religiosidade antiga, em especial, na Grã-Bretanha – como consultor histórico, o diretor e o estúdio preferiram inserir elementos mais “ligados” a sua concepção para o personagem do que se apoiar na história mítica.
Em uma conversa logo após o filme, Matthews disse que a ordem da produção era clara: “nada de magia, é um filme de ação”. Ou seja, logo de cara, o filme perdeu a chance de ser o mais próximo possível do até hoje pesquisado sobre o personagem justamente por ter alguém como Matthews envolvido, porém, relegado ao segundo plano. Com isso, Excalibur transformou-se na espada do pai de Arthur, Merlin tornou-se líder dos “bárbaros” woads (nome dado aos bretões), a existência de Avalon e da Dama do Lago sequer é cogitada, e Arthur apresenta-se apenas como um bom líder militar interpretado por Clive Owen. Um homem comum, muito longe do mito que o mantém na mente das pessoas e é referenciado até hoje. Pobres das crianças que assistem aos desenhos e ouvem à versão da história de um jovem destinado a ser rei retirando a espada mágica da pedra ou a recebendo do espírito da água.
Por mais que a premissa do filme seja “apresentar uma versão desmistificada sobre o personagem”, séculos de histórias e crenças envolvendo o Rei Arthur e seus cavaleiros não poderiam ser simplesmente ignorados assim. Não que alguma versão seja mais acurada que a outra, mas o ponto latente nesta discussão é o fato de Hollywood estar rotulando de forma pesada e clara a magia, a espiritualidade não-cristã, e as crenças antigas como elementos para filmes puramente ficcionais como O Senhor dos Anéis, Harry Potter, etc.
A sociedade moderna pode não ter mais espaço para a crença no antigo poder dos druidas, nos feitiços de grandes bruxos, na magia da natureza, porém, desvincular os grandes mitos e heróis da ligação com os deuses e a magia que muitas vezes os auxiliavam acaba por enfraquecer o poder do mito em si. E não vivemos uma era propícia ao surgimento de novos arquétipos sociais, culturais e militares. Cada vez mais, torna-se necessária a existência de modelos a serem seguidos e enfraquecer os elementos clássicos pode não ser o melhor caminho. Quando tiramos as referências clássicas da frente, em quem as futuras gerações vão se inspirar? Sujeitos como Stallone ou Capitão Nascimento? Em heróis meramente fictícios como Aragorn?
Engana-se, entretanto, quem entende este argumento como um estandarte a favor do antigo paganismo ou da existência da magia, uma vez que o próprio cristianismo sofre do mesmo mal. Em Cruzada, cujo título original é Kingdom of Heaven – o Reino dos Céus – a trama que aparentava ser focada no aspecto espiritual da jornada até Jerusalém não passou de um filme de ação, com batalhas eletrizantes, um herói cativante, porém, frustrado com a política envolvendo a crença em Cristo e a própria descrença dos religiosos envolvidos e da ausência real de ideais na manutenção da posse da cidade. Riddley Scott andou apostando em obras críticas como em Falcão Negro em Perigo (provavelmente a razão por ter perdido o Oscar por direção em Gladiador) e não poupou a Igreja Católica em Cruzada.
Especialmente no cerco de Saladino a Jerusalém, a fé dos religiosos é abalada pela iminente derrota e a perspectiva de massacre, sobrando para Balian (Orlando Bloom), que viajou à cidade em busca de redenção – a verdadeira razão de sua cruzada pessoal –, oferecer a esperança outrora ofertada ali mesmo por Jesus séculos atrás. O que deveria ser uma jornada baseada no sagrado e na fé acabou se transformando numa trama política e num jogo de poder. Afinal de contas, o domínio da Terra Santa nada mais era do que uma situação política para os verdadeiros governantes daquele tempo. De qualquer forma, o elemento religioso era, sim, fundamental para a maioria dos homens que lutaram aquela guerra.
É uma pena notar que esta tendência existe na indústria e que sob o argumento de mostrar “a visão real” sobre vários personagens fundamentais na construção do pensamento moderno e dos arquétipos que até hoje guiam os homens e seus sonhos, deixemos de lado a simples crença num mundo em que a fé, literalmente, pode mover montanhas e que uma simples espada antiga pode reunir os homens sob um objetivo comum. Ação pode render boas bilheterias, batalhas podem inspirar diretores a superarem Peter Jackson – até hoje ninguém conseguiu -, mas é de ideais e modelos admiráveis que nossos sonhos são criados e é sobre eles que novas gerações serão ensinadas e baseadas.
Hollywood quer nos vender um mundo sério demais e deixar tudo que pode dar tempero a nossa vida com cara de faz de conta. Hoje, pode ser, mas há muito tempo, no meio de povos muito distantes, a coisa era bem diferente e, quer diretores e roteiristas queriam ou não, eles são nossos ancestrais e seus pensamentos de decisões, de certa forma, definiram o mundo em que vivemos hoje. Que a magia resista à tendência financeira e que a Fênix consiga se reerguer das cinzas dos grandes estúdios e suas fórmulas de sucesso.
Texto: Fábio M. Barreto
Apesar de não achar que tantos filmes desse género são sem graças, alguns realmente viraram grandes obras. Exemplo disso Gladiador, mas que teve um mestre chamado Ridley Scot que soube guiar e transformar o filme em um clássico do estilo.
Ou seja, é necessario sempre ter um spielberg, cameron ou copolla da vida, pra fazer superproduções, envolvendo milhões e mexendo com histórias ja firmadas com o pulblico.
A porcentagem de filmes entre bom e ruim nesse estilo na minha opinião é:
80% Ruim(ou lixo) 10% Aceitável 10% Bom(ou excelente)
mas concorda que mesmo com um desses caras na direção, se você ignorar o aspecto mítico de algumas histórias, elas caem por terra pois, literalmente, perdem sua essência? É um gênero que eu adoro, agora pense em Fúria de Titãs sem o aspecto mitológico, o que sobra? Um cara lutando contra monstros, sei lá, o charme vai embora. Parece jogo de futebol sem a bola. =D
abs!
Barreto, muito legal sua avaliação desse “gênero” de filmes. Apesar de alguns deles terem tido tanta divulgação, tanta “festa”, qdo finalmente vi o filme, veio aquela decepção. E eu talvez não tivesse me dado conta que essa decepção venha de toda essa “falta de magia” nesses filmes. E olhe que até gosto de Rei Arthur, Tróia e Cruzada, um pouco menos, aliás, Cruzada, bem menos…rsss
Kd toda aquela magia descrita em Brumas de Avalon, tá certo, esses livros tiveram outra adaptação ( muito fraca por sinal ), mas tudo envolve Rei Arthur, e infelizmente não li Rei do Inverno, de Bernard Cornwell para poder pensar em uma adaptação dessa trilogia.
Lembro que eu era apaixonada pelo filme Fúria de Titãs, não o vejo há anos, não sei qual seria a graça de vê-lo hoje em dia, mas toda aquela coisa envolvendo deuses e seres mitológicos era muito legal. Por falar em Fúria de Titãs, o remake Clash of the Titans estreia em abril(acho) do ano que vem né…
Helena, o novo Fúria de Titãs, sai em 26 de março de 2010. Lembro que quando eu era criança, sempre assistia a esse filme quando pasava na TV.
Concordo com seu texto, Barreto, Tróia seria um filme muito mais interessante se tivesse em sua trama mais aspectos da mitologia grega.
Pelo texto, posso supor que você já leu a fantástica trilogia do Bernard Cornwell sobre o Rei Arthur, certo? Aquilo sim é uma história que sabe misturar magia com realidade! Apesar de nós, leitores, sabermos que a magia dos druidas não passa de superstição (ou não) do povo antigo, ainda assim é espantoso quando certas coisas acontecem, como quando Derfel quebra o osso de galinha que recebeu de Merlin.
É um lindo exemplo de como a magia pode ser retratada, mesmo em uma trama mais séria e “real”.
Não vou falar mais para não dar spoilers, mas recomendo a todos ler As Crônicas de Artur, de Bernard Cornwell. Seria fantástico se ela fosse filmada algum dia.
Quanto aos filmes épicos, verdade que eles voltaram com força após Coração Valente, mas além desse, só gosto mesmo de Gladiador, SdA (que se encaixa mais em “fatasia”) e Cruzada (sim, apesar de vários defeitos, gostei do respeito com que o Ridley Scott tratou os dois lados em conflito na Terra Sagrada).
Mas Tróia e Alexandre são ruins de dar pena….e Rei Arthur com Clive Owen nem merece comentários.
Abs!
Fala Gabriel,
Li Cornwell sim. Agora comecei a ler em inglês. =D
Não vou entrar no mérito da magia dos druídas.. hehehe ( /| ) . Cornwell deu sim uma visão mais prática, e muito desmitificada. Merlin é um sujeito mais inteligente que os demais ao seu redor e isso, somado à imagem mística, lhe dava vantagem sobre o resto do povo.
Tróia perdeu muito. Sei lá, Aquiles ficou tão sem graça… o pior foi saber que o os estúdios MANDAM tirar a magia. uma pena.
abs,
Fábio
[…] o último grande exemplo. Já a Mitologia não tem tanta sorte. Recentemente, os estúdios tentaram extirpar a magia de suas narrativas para apresentar personagens mais “reais”, ou então buscaram paralelos […]
[…] Times, quem abriu a edição 2010 do evento foi Robin Hood. Comparado jocosamente a Gladiador ou Cruzada [dois filmes históricos anteriores de Ridley Scott] pela imprensa norte-americana, criticado pela […]