Mais um aspecto do plano dos Visitantes foi revelado e V começa a abordar um assunto delicado, controverso e, possivelmente, negativo para a série da ABC.
por Fábio M. Barreto, de Los Angeles
Observada por olhos distantes do seu dia-a-dia, a Ficção Científica pode se transformar facilmente numa série de regras, elementos pré-definidos e obrigatoriedades estruturais definidas especialmente pelos acadêmicos. Qualquer pesquisa en passant expõe características como efeitos da tecnologia e outras formas de vida sobre a Humanidade, o futuro da espécie, assim como seu passado. Entretanto, o vanguardismo e a crítica social são tradicionalmente descartados por se supor que esteja incluído num dos elementos citados, o que é um erro. Muito disso remanesce dos filmes da década de 50, mas lá se vão 60 anos e o gênero evoluiu absurdamente, inclusive ao ponto de poder se integrar tão sutilmente a outras estruturas e transmitir seus conceitos sem a cafonice da “Golden Age” ou a previsibilidade esperada por seus críticos. Resumindo, a FC continua como gênero independente, mas influenciou todo mundo e consegue se “esconder” quando necessário. Esse cenário é formidável para a esperada, mas ainda distante, desmistificação do estilo e a queda do preconceito, mesmo assim, não livro a FC de riscos e sinucas de bico. E a série V acabou de se enfiar numa dessas.
Spoilers a partir desse ponto.
Apoio irrestritamente a FC não-óbvia, aquela que serve como pano de fundo para a crítica social, para o questionamento, enfim, que te faz parar e olhar ao redor com o intuito de compreender as coisas. É assim que o leitor/espectador cresce, evolui e, no futuro, vai provocar essa sensação em outros. Um belo ciclo. V resolveu fazer isso, mas com outras motivações. Os criadores da série bateram tanto na tecla do “não ser remake” quando os entrevistei, que achei ser apenas uma resposta às inúmeras perguntas repetitivas sobre a natureza do programa. As principais defesas foram: é diferente, faremos homenagens, vai ser mais complexo, as motivações são outras, e etc. Os últimos três episódios comprovaram tudo isso e, finalmente, me permitiram entender a real intenção desses comentários. Diana (Jane Badler) apareceu provocando um dos maiores momentos WOW dos últimos anos, mas as boas notícias passaram por aí. No intuito tão desesperado de fugir da “simplicidade” argumentativa e técnica de V – A Batalha Final, o novo V quer ser ultramoderno e, e aí vem o problema, crítico onde não deve ser. Simples pode ser bom. Garante limites, ou seja, corre-se menos risco de passar do ponto e perder o rumo.
Fé sempre foi um elemento forte na nova versão, afinal, um dos membros da Quinta Coluna moderna é um padre, Jack Landry (Joel Gretsch) e as reações de seus párocos em relação aos Visitantes foram expostas pelos roteiristas em diversas ocasiões. Numa discussão semi-secular, semi-social, valia a pena explorar as ramificações religiosas da chegada dos alienígenas. Deus existe? Os Visitantes são lagartos, logo, não foram feitos “à sua imagem e semelhança”, mas devem ser tratados pelos preceitos judaico-cristãos do deus uno (não há pagãos, espíritas, xintoístas ou mesmo ateus na série, mas as perguntas servem a todos)? Sempre há questionamentos quando a fé é abalada por um elemento externo, nesse caso, alienígena. Religião é um assunto delicado, sempre.
A série original era simples: os alienígenas queriam transformar os humanos no pão nosso de cada dia. Ponto. A nova versão tentou dar um golpe de mestre e não só bateu na trave como a bola voltou na testa: misturaram religião, colonização e ciência num balaio de gato tão maluco que soou mais alienígena do que os próprios lagartos. Quando Anna (Morena Baccarin) diz que eles vão “extrair a alma dos humanos”, pois acreditamos que eternidade da alma e do espírito e só assim vão conseguir nos dominar, um gigantesco balde de água quase congelada despencou na minha cabeça.
A existência da alma é um dos maiores dogmas religiosos da Humanidade e, por ser dogma, é preciso ser aceito incondicionalmente. Muita gente tem dúvidas, afinal, alma não é mensurável ou palpável. Lembro de um episódio de Contos da Cripta, no qual um cientista maluco conseguiu encontrar a alma e usaria a essência de colegas para viver para sempre. Claro que não deu certo. V arriscou pesado e entendi a jogada: ao tentar quantificar e isolar a alma, Anna comete seu primeiro grande erro ao aplicar sua lógica a algo incompatível com os conceitos dos Visitantes. Eles são científicos e sua divindade é a rainha, cuja influência é sentida de forma física, visível e tem consequências metafísicas. Anna pensa o mesmo da espiritualidade humana e, assim como alguém poderia lhe privar da capacidade de conceder o “bliss” a sua espécie, quer fazer o mesmo com os humanos. Finalmente, uma falha gritante no plano das lagartixas.
Parece bom, certo? Seria, caso não colocasse a série em risco. Tirar as pessoas da bolha de segurança é fantástico e provocar questionamento também, mas definir que a “alma existe” e transformar isso na nova linha de pensamento da série vai distanciando V de uma série de ficção científica social e se transforma numa arena de idéias controversas e mal copiadas de Battlestar Galactica. Galactica inseriu o elemento religioso com maestria, ao atribuir fé aos cilônios e utilizando essa dinâmica para construir arcos dramáticos e efetivos. Pode ser cedo para avaliar, mas por ter sido jogado sem mais nem menos como cliffhanger para o episódio seguinte diz muito sobre as intenções. É um fato, uma realidade naquele mundo, e assim será tratada.
Conceitualmente, os Visitantes precisam estar errados. Se estiverem certos, vão encontrar a alma e isso não poderá simplesmente ser ignorado. Logo, inseriram um elemento forte, desconfortável, óbvio e avulso. Algo parecido com os “anéis de poder” que Delenn usou por pouco tempo em Babylon 5, não deu certo e nunca mais foram vistos. Nesse caso, estamos falando de um elemento fundamental para a existência de muitos espectadores. Inevitável pensar que os papéis se inverteram, pois, enquanto os humanos lutaram para encontrar algo capaz de derrotar os Visitantes (resultando no pó vermelho, uma arma química letal), agora são os extraterrestres quem, mesmo com toda tecnologia e claro controle sobre os humanos, buscam um ás na manga. Eles querem nossa alma. Eles querem nossa essência, física e metafísica. Tyler foi revelado como uma aberração que vive com DNA absurdamente debilitado, arquitetado para transmitir esse código genético cheio de lacunas para Lisa e, portanto, permitir que a herança dos Visitantes se misture com a biologia humana. É o fim da nossa raça. Tanto espiritual quanto físico.
Essa é a ameaça postulada por V, que agora trilha um terreno minado. Ficção Científica tem liberdade para criticar, subverter e incomodar, mas é preciso pensar nos verdadeiros limites do espectador, especialmente quando se comanda um programa na TV aberta norte-americana. Com tanta elaboração prevista pelo novo seriado, dar uma resposta tão definitiva, nesse momento, pode, ao mesmo tempo, cruzar barreiras desagradáveis com o público e criativamente limitadoras no programa. De qualquer forma, cada um desses elementos mostra lados ruins da Humanidade, dividida entre os novos deuses e a esperança na antiga mensagem. A pergunta “eram os deuses astronautas?” se faz presente e, além de responder afirmativamente, V define seu primeiro ponto de divergência. Ame ou odeie. Não há mais dubiedade com as claras escolhas de Anna e Tyler, cada vez mais próximos pelo deslumbre e imbecilidade do garoto, e Erica e Lisa, que procura na terráquea um ombro amigo para compreender seus sentimentos e atravessar a difícil transição mental. Nesse aspecto, Tyler é mais artificial que Lisa. É o cordeiro pronto para o sacrifício e, se pedir com jeito, ele mesmo aperta o botão que o destruirá. No fim das contas, a mescla almejada pelos Visitantes caçadores de almas e alteradores de DNA já foi obtida com a definição dessas duas dinâmicas. O resto, é resto.
Né…
Quero só ver o “vidrinho” que vai conter a “alma”….
Fora que o momento atual da serie, é justamente também dos V´s plantarem uma prova que o “padre” não tem boas intençoes
e dá-lhe mais tiros no pé
Pelo que entendi, o problema enxergado na situação toda é o que tema/abordagem seria complexo demais, é isso? Não posso deixar de concordar, tendo em vista o tal do “americano médio”. Mas no texto sobre SGU o Barretão exaltou o papel da FC em ir além, não ser um produto pra todos. Me parece que a situação é a mesma aqui. SGU se deu mal, V pode muito provavelmente seguir o mesmo destino… seria uma pena, mas eu acho muito mais válido arriscar e dar esse passo mais audacioso do que se manter na segurança do feijão com arroz. Vale mais uma ótima série curta, de poucas temporadas, ou uma meia boca que dura anos e anos?
Pode ser que valha, Jackson. Mas a execução foi meio jogada, sabe. Sou super a favor de questionar religião, é uma necessidade, aliás, MAS (bem grande), é preciso servir a um propósito, não ser algo grosseiro. Pq aí vc mata as chances de ser algo muito bom e passa a ser algo muito forçado. Quero que a FC continue na TV e isso pode prejudicar mais uma série que começou bem. 🙁
enfim, valeu pelo ponto de vista. bem sensato.
Pois é, Barretão… dá pra dizer que foi meio jogado sim, isso até vai de encontro com especulações que ouvi por aí de que os produtores estão temendo o cancelamento, e diante da possibilidade de NAO ter uma 3a temporada, começaram a acelerar as coisas agora pra poder resolver tudo mais ou menos como planejam, se for necessário. Vamos esperar que nao seja, né…
Abraço!
Esta série foi abandonada pela estrada das temporadas perdidas. Começou a me cansar e percebi que não valia a pena assisir. Já que você citou BSG, preciso dizer que ela ao lado de Stargate Atlantis são os seriados mais bacanas que já vi.
Bá, não vejo V mas vi que você mandou bem bagarai nessa analise! =D
Meu Deus, eu não sei como ainda consigo acompanhar essa série! Essa 2ª temporada está cada vez mais trash e para piorar ela está tentando introduzir elementos mais sérios (como a questão da alma) só que de uma maneira desastrosa! O que para mim, salva a série são as interpretações da Morena Baccarin e da Elisabeth Mitchel (a eterna Juliet). E para mim, Tyler é um dos personagens mais insuportáveis de todos os tempos!