A arte de se contar histórias gira em torno de um elemento fundamental: conflito. Toda e qualquer trama que você já gostou, gosta ou vai gostar na vida, vai ser assim. É um fato. Quer a prova? Bloft, o ser gelatinoso, saiu do trabalho, na fábrica de Zengstnar – um pó fundamental para a vida dos seres gelatinosos de Gogotaba –, deslizou até sua residência, consumiu grandes quantidades de Biibtkar líquido, e dormiu. Fim da história. Por mais interessante (ou não) que o cenário possa parecer, nada acontece. Agora, se Bloft for capturado por uma sonda terráquea e tiver que encontrar um modo de voltar para casa, trancafiado, no meio do espaço sideral, fica mais legal, não é? Bem, era só um exemplo. Todo autor sabe disso, independente do meio escolhido para contar a história. E, claro, a Marvel Studios sabe bem disso. De forma bem-sucedida na maioria de seus filmes, o estúdio tem aplicado a fórmula e justificado os efeitos gigantescos, exageros típicos dos quadrinhos e feito o mundo alternativo habitado pelos super-heróis se tornar acessível verossímil e, na hora certa, relevante. Isso nos leva a Vingadores: A Era de Ultron, nova aventura de Capitão América, Homem de Ferro, Hulk, Thor, Viúva Negra, Gavião Arqueiro, Homem-Aranh… oops, ainda não. E a pergunta é uma só: é relevante?
Para entender, precisamos pensar no conflito. Embora algumas pessoas ainda recusem a criação do “gênero” Filme de Super-Herói – que já existe pela simples existência de uma série de longa-metragens estrelados por pessoas dotadas de poderes ou habilidade extraordinárias, oriundas de dois (ou mais) grandes universos criativos desenvolvido ao longo de mais de meio século e, inevitavelmente, batalham vilões assustadores e buscam a justiça no mundo –, é uma realidade. Assim como nos quadrinhos, que originaram esse movimento, as adaptações, e filmes originais, para o cinema continuam o formato básico dos gibis e, felizmente, os expandem. Resultado disso é vermos Capitão América mergulhar na espionagem e reavaliar suas noções de pátria em Soldado Invernal, por exemplo e, especificamente em Vingadores 2, podemos ver o Gavião Arqueiro demonstrando uma dualidade bacana entre o soldado e o cidadão. Alias, parece até uma continuação de Guerra ao Terror, com Jeremy Renner mostrando porquê ganhou tanto respeito na indústria do cinema.
É interessante notar, e até exibir, Humanidade em personagens tão distantes do homem comum. Thor é deus e alienígena; Hulk é, bem, o Hulk; os mutantes dos X-Men são algo além, logo, vivem perante outras regras e perspectivas. Mas é isso que o público sempre procura, identificação, uma jornada próxima à do próprio espectador. O resultado disso está diretamente ligado às catástrofes, e acertos, da Warner, por exemplo. Funcionou com o Batman, mas fracassou com todos os outros personagens. E qual a coisa mais humana do que morrer de medo e, bem, errar? Vingadores 2 está cheio disso. Não que os personagens fiquem medrosos, mas são colocados em situações mais extremas do que o habitual. Pode ser uma questão de perspectiva, ou simples leitura, mas tudo depende do que está em jogo. E, no caso dos Vingadores, é salvar ou mundo ou nada!
Logo, os erros acabam definindo cada um deles mais que acertos ou um bom histórico. E quem nunca ouviu a história, um erro conta mais que mil acertos? Nada mais humano, real, acessível. As razões de cada personagem veem à tona, assim como personalidades e objetivos de vida. E o que há de mais contrastante do que o idealismo patriótico do Steve Rodgers e as aspirações egocêntricas de Tony Stark? Tudo isso faz com que a trama sobreviva nos intervalos entre as inúmeras, e cada vez maiores, batalhas do grupo contra inimigos – que todo mundo sabe, nunca vão fazer muito estrago – em prol do planeta. Em Hollywood, essas sequências são chamadas de “set pieces” e são o terror de produtores e roteiristas, pois muitas delas tendem a esconder um roteiro fraco ou uma história desinteressante. E Vingadores 2 chega muito perto de cair do precipício. Visualmente, as batalhas são impressionantes, mas a repetição tira a força da maioria delas. No primeiro filme, existia a expectativa da inevitável reunião dos Vingadores – que acontece, para valer, na invasão a Manhattan – e todo mundo entrou na dança. Em Ultron, a situação é invertida e, sem saber, estamos diante da autodestruição da equipe. Por precisarem ser tão humanos – por nós, espectadores! – eles são suscetíveis às nossas falhas e o caldo engrossa.
A mão de Joss Whedon desce mais pesada que o Mjolnir e ele nem precisaria usar a Feiticeira Escarlate para estragar o tempero. Como é mesmo? Com grande poder vem grande responsabilidade? Bom, Tio Ben esqueceu de dizer que também vem muita pressão, frustração e a aniquilação da vida pessoal. Como lidar com isso? Bem, dar porrada em monstros o tempo todo ajuda, mas tudo tem limite. O filme acaba virando uma sessão terapêutica para seres superpoderosos, superinteligentes ou as duas coisas. Ser forte deixa de ser importante, ficar inteiro é a maior missão. Eis que, entre deuses e mutações, o Gavião Arqueiro – porradeiro, mas tão normal quanto eu e você (será!?) – serve como o bastião do bom-senso, afinal, ele é humano 100% do tempo e tem expectativas muito menores (em escala), que os demais. Perspectiva é uma arma poderosa, organiza as coisas, evita erros catastróficos, mesmo sem impedir errinhos menores. A Viúva Negra complementa essa temática e, finalmente, coloca uma pitada de romance – no melhor sentido da palavra – na trama.
Algo precisava manter a atenção nesse pessoal. Ultron, o vilão, é desinteressante. Ele apenas catalisa uma das tramas principais de Vingadores – Era de Ultron: legado. Ele é o filho birrento, e com acesso a armamento pesado, de Tony Stark. Os Vingadores em si são o outro filho problemático do personagem de Robert Downey Jr. Embora todo mundo consiga encontrar razões para rir, falta unidade constante. Falta, bem, um pai de verdade, um educador. O que eles têm, no máximo, é o tio gente boa que fala besteira, faz piada o tempo todo, mas que vai embora no fim do dia. Como crescer normalmente assim? As chances de problemas são gigantescas. E eles acontecem.
Novamente, o balanço entre a ação e a relevância anda na berlinda ao longo de todo o filme. Há sub-tramas, interesses, características – sotaques estranhos – e piadas demais espalhadas pelo longa-metragem. Por um lado, palmas. Afinal, o filme nunca pode ser acusado de ser monotemático e apenas uma desculpa para as batalhas (embora, seja possível pensar isso logo na abertura, que não tem o ritmo que se espera). Por outro, é preciso ficar tão ligado nas migalhas oferecidos pelos personagens – especialmente os gêmeos malucos – quanto na câmera nervosa que registra a pancadaria e às vezes lembra a alucinação negativa de Transformers.
Aproveitando a analogia da paternidade, talvez os filmes individuais – os filhos da franquia – já estejam aprendendo a substituir os pais, afinal, há sempre mais espaço, tempo e profundidade para ficar ao lado do Capitão América, de Thor (embora o segundo seja descartável), Hulk e Homem de Ferro quando eles estão sozinhos. E, como já se sabe do futuro de todos eles, a independência claramente faz bem aos personagens da Marvel. Não que precisem se transformar no Batman de Christopher Nolan, mas seus filmes solo vão, aos poucos, em termos cinematográficos, ganham ares de coisa séria, enquanto Vingadores – e a vindoura Guerra Civil – sirva apenas como o grande espetáculo que abre a temporada. O show do ano. Aquele que todo mundo vai ver mas, não necessariamente, tem muito o que falar depois.
O conflito está ali, espalhado entre os personagens, escondido em seus pesadelos, medos e inseguranças, mas, dessa vez, não é forte o suficiente para segurar a onda, mas aí você pensa… putz, tem o James Spader mandando muito bem como Ultron, tem o Visão lindão de tudo, tem aquela batalha final com todos os heróis do auge da forma, despedindo-se em grande estilo, e pensa: para que conflito mesmo?
Vingadores: Era de Ultron cumpre o que promete, até dá um pouco além, mas é a festa. Tem quem prefira abrir os presentes, tem quem goste da antecipação para saber quem vai aparecer. Como disse, a qualidade depende do referencial. Um fato é: não chega nem perto de ser um filme ruim e, hoje em dia, isso já diz muito. A Warner que se cuide. A Liga da Justiça tem um oponente (não inimigo, afinal, ele adora o gênero e já disse estar empolgado com os Super-Amigos) muito mais forte que o Darkseid para enfrentar e o nome dele é Joss Whedon! Ah, Marvel, a Fox mandou lembranças: o Quicksilver deles bota o de vocês no chinelo!